
Talvez pela carência de cego a enxergar de novo, de aleijado a largar muletas e de mudo a danar falação, o parto foi visto por todos como um pálido sinal dos céus. Como nas terras do Diabo as mulheres embucham e desembucham por sina, ninguém deu muita atenção ao sinal e, para não deixarem Deus chateado, deram ao nascido o nome de Maria da Ferida. Nome comprido, esquisito como o montinho de carne que de tão magro só tinha olhos e umbigo.
Com o tempo o fenômeno do sangramento foi ficando esquecido e o nome comprido, reduzido. Maria da Ferida encurtou pra Ferida e, de tanto o povo descascar síbalas e letras, Ferida virou Frida.
Se a criança barriguda e olhuda tivesse nascido lá pras bandas das cidades de Deus, certamente teria pela frente uma vida de estudo e futuro, mas como nascera nas terras que o Diabo aceitou só pra não fazer desfeita, Frida teve pela frente enxada e fardo.
Aos cinco anos de idade, o fardo, que pesava mais do que a cruz que Jesus carregou, deu à Frida os seus primeiros cinco calos. "Sinal dos céus", ela pensou e saiu correndo para exibi-los à família e aos vizinhos. "Calos de enxada", disseram indiferentes. A mãe, ignorante de qualquer teoria psicanalítica, estendeu as mãos caludas e, sem orgulho, num misto de resignação e raiva, exibiu os cento e cinquenta calos das mãos. Cento e cinquenta rochas carnudas, irregulares e cascudas como os cactos da caatinga.
Se Frida morasse nas cidades de Deus e não nas terras que o Diabo aceitou só por obrigação, certamente toparia com algum psicanalista a apontar uma provável competição materna. Mas como de Deus ela só conhecia a ferida e a mãe era tão rota que nada tinha para competir, preferiu considerar as mãos caludas como forma de sabedoria materna.
Aos dez anos brotaram mais alguns calos, entre o dedo polegar e o dedo enrolador de cachos (Frida era vaidosa). Dessa vez não os viu como sinal dos céus e continuou lascando ferida e suor no roçado. A mãe já tinha se ido sem completar duzentos e cinquenta calos. Morte comum, feia como a Chorona (Frida cismara que a Morte assim se chamava).
Se o falecimento tivesse ocorrido lá pras bandas das cidades de Deus, certamente o morto teria caixão e lápide, mas como o acontecido aconteceu nas terras que o Diabo aceitou só pra não fazer desfeita, o cadáver foi enterrado em rede e em pouco tempo foi descavado e roído pelos cães famintos.
O fardo, que era bem maior do que a cruz que Jesus carregou, feriu Frida de tal maneira que em dez anos brotaram mais calos. Ela, que de há muito perdera a paciência de procurar sinais no céu, não se surpreendeu ao vê-los. Acendeu um toco de vela para a mãe defunta, ateou fogo na lenha do fogão e esticou o lombo enquanto o pirão de farinha esquentav

Se o lombo doesse lá pras bandas das cidades de Deus, certamente seria diagnosticado como desvio da coluna, mas como doía nas terras que o Diabo aceitou só por obrigação, Frida trincou os dentes e dormiu faminta. O pirão que mal enchia três colheres grudou no fundo da panela que nem as feridas no lombo de Frida.
Quanto completou cinquenta e poucos anos, Frida tinha as mãos cobertas por duzentos e sessenta calos, cascudos e feios como a Chorona. O dedo enrolador de cachos já não enrolava cabelos e o polegar mal dava para apoiar o cabo da enxada. O fardo, que há muito superara o calvário de uns duzentos Cristos, perdera o fôlego da sobrevivência e agora arfava como cachorro velho e doente.
Se o fardo vivesse lá pras bandas das cidades de Deus, certamente teria hospital e médico para tratar a asma, mas como era fardo nascido nas terras que o Diabo aceitou só por obrigação, Frida não quis fazer desfeita e contentou-se com um tiquinho de ar que lhe garantisse um pouco mais de esperança.
FRIDA
Um comentário:
.....AMO A FRIDA, JÁ VI FILME SOBRE A SUA VIDA E LEIO TUDO QUE CAI EM MINHAS MÃOS, MULHER LINDA, FORTE, INTELIGENTE, TALENTOSA E ADORÁVEL......
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