Depois das refeições,
Vitalina recolhia-se à cozinha. Lavava a louça, enxugava os pratos, arrumava os talheres na gaveta, sacudia a toalha de mesa e pendurava o pano de prato no varal do quintal. Depois, servia-se de um cálice de vinho do Porto, acendia um cigarro, sentava-se à velha mesa e ligava o rádio.
As notas de
Moon Light Serenade aninhavam-se no bolso de seu avental que não era sujo de ovo, mas guardava estrelas.
Sílvio Caldas, talvez por ciúmes de
Duke Ellington ou por não resistir a um regaço moreno, aveludava ainda mais a voz e cantava só para ela.
Vitalina gostava desses galanteios.
Cresci dentro de uma cozinha que cantava e recitava trechos de antigas novelas. Por premonição estética ou por vergonha de não saber ler, Vitalina tinha na cozinha
(para ser usado no futuro) um grosso volume de poesias de
Cruz e Souza. Não sabia decifrar as letras, mas aprendera a gostar do moço que morava dentro do livro . Ah, o livro. Um livro que aprendeu a falar à medida que na escola eu conhecia as letras. E, quando cheguei ao
Z e ao domínio dos verbos, dos pronomes, das conjunções, dos hiatos e dos objetos diretos e indiretos, o moço do livro soltou a fala.
Disse que era um poeta. Vitalina gostou tanto de suas palavras, que lhe pediu para trazer os amigos "para uma prosinha". O moço não se fez de rogado e trouxe um animado bando que, num piscar de olhos, transformou a velha cozinha num recanto boêmio.
Todos os dias, enquanto
Vitalina refogava o feijão ou assava um bolo, lá se reuniam
Neruda,
Eluard,
Camões,
Castro
Alves,
Gregório de
Matos,
Rimbaud,
Allen
Ginsberg,
Baudelaire,
Elisabeth
Bishop,
Pound,
Augusto dos
Anjos,
Dorothy
Parker,
Lorca... para beber licor de jenipapo ao som da
Rádio Nacional e das histórias que
Vitalina tão bem narrava.
O endereço da boemia espalhou-se, e vieram os pintores.
Picasso ficou maluco com os potes de barro que
Vitalina ganhara de
Mestre
Vitalino.
Dali levou
Gala.
Goya chegou desacompanhado.
Degas apareceu com umas bailarinas. Vieram muitos, aos bandos.
Os atores chegaram por último
(trabalhavam até tarde), acompanhados por amigos cantores.
Maria
Callas chegou com
Theda
Bara, uma chegada triunfal;
Callas nas vestes de
Medéia, e
Theda nas de
Cleópatra.
Procópio
Ferreira surgiu com um querubim baixinho chamado
Grande Otelo;
Cacilda
Becker com
Pixinguinha e
Donga;
Fernanda
Montenegro com uma nereida chamada
Chiquinha Gonzaga. E foram tantos que lá foram, que eu poderia jurar que
Eurípedes e
Shakespeare também por lá apareceram.
Aos domingos, as mulheres da minha família se reuniam, e
Vitalina narrava as artes da boemia. Ninguém se espantava. Afinal, eram bruxas, e se bruxas podiam voar em vassouras por que seria impossível poetas saírem dos livros, pintores surgirem das telas, atores representarem à mesa e cantores fugirem dos discos? Não, as "artes" não eram nada improváveis.
Os anos se passaram e a boemia cresceu. Vieram os vizinhos e em pouco tempo o bairro inteiro.
Vitalina cozinhava e o improvável acontecia. Os noivos se casavam, os feios embelezavam, os malvados adocicavam, e os velhos rejuvenesciam.Um dia,
Deus, que já estava cansado - e com ciúmes - de ouvir as histórias da tal boemia, não resistiu ao cheirinho do bolo que
Vitalina assava e a chamou para viver com
Ele.
Vitalina aceitou o convite e fez de
Deus sua última conquista. Dizem que ela foi a primeira a conquistá-
Lo pela boca.
obs: se você gostou de Vitalina, sua cozinha, seus amores, seus feitiços e seu "caso" divino , ela está inteirinha no meu livro
"Amor se Faz na Cozinha", publicado pela
Editora Bertrand.