sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Felicidade

Deus estava de férias quando Felicidade nasceu. Acompanhado por um séquito de anjos, querubins, serafins, santos e, é claro, o Filho, fechou o Paraíso e grudou na porta um apressado "Volto já". Mas não pretendia voltar tão cedo...
No céu ficaram as Santas, as Senhoras, Eva e Lilith (que aproveitara as férias de Deus para visitar as amigas). A entrada de Lilith se dera durante um descuido de São Pedro que, eufórico com a promessa de vários dias de vagabundagem, esquecera de passar as famosas sete chaves na porta.
Lilith não se fez de rogada e entrou conduzida pelas mãos de Joana, a do Arco. Escondeu-se num quartinho em que Deus guardava as mundanices da Terra e que não fazia a menor questão de ver. E lá, entre os dejetos da humanidade, o prazer, a gula, os líquidos impuros, o riso, as gargalhadas, a esperança, a carne, as mulheres, asserpentes, as maçãs e os seus respectivos pecados, Lilith ficou escondida por vários dias celestiais.
Não sei se pela presença infernal de Lilith ou se pela fermentação dos tais líquidos impuros, os dejetos mundanos iniciaram um quântico processo de concepção que culminou na gravidez de Lilith. Concepção sem Pai nem Espírito Santo, em si como a gravidez das mulheres...
A solidão, feminina por natureza, não durou muito e logo vieram as Santíssimas, Eva e as Senhoras. Juntas, enquanto Deus se divertia com o Seu séquito de falos, tricotaram casaquinhos, bordaram lençóis, mantas, cueiros e fraldas, tecendo em nós muito delicados, os fios do destino da pequena Felicidade. ( A esta altura devo dizer que por processo transcendental inquestionável ou pelo excesso de maçãs que Lilith ingeriu durante a gestação, todas já sabiam que a barriga fermentava uma menina.)
Não sei se por generosidade Altíssima ou se pelo desejo de se projetarem em algo mais além da santidade, depois de discutirem por séculos, milênios e horas, Santas, Senhoras, Eva e Lilith decidiram que a menina se chamaria Felicidade.
Guadalupe foi a primeira a sugeri-lo quando se recordou que o vira nos olhos de Diego, o indiozinho mexicano, refletindo todas as estrelas do céu. A lembrança da Virgem suscitou as recordações das Feminíssimas presenças. Aparecida o identificou nos corações dos pescadores que a retiraram das águas do rio; Maria , quando lembrou de seus seios a jorrarem leite nos lábios do Filho. Fátima também nele pensara quando fechou o céu em negror para logo depois o abrir em luz. Joana, a do Arco, nele pensara quando corria livre entre os guerreiros e até quando sustentou seus ideais na fogueira. Santa Rita de Cássia custou um pouquinho para dele se recordar mas logo o localizou num cantinho da cozinha, bem debaixo da janela, onde podia se esconder da violência do marido. Lilith dele se recordava tatuado no corpo de Adão, no momento em que rolou sobre ele e recebeus seus líquidos. Eva, o reconheceu no brilho redondo da maçã roubada do pomar de Deus.
Recordadas por retalhos de altíssima humanidade, nomearam Felicidade bem antes dela ter nascido.
Não sei se por nomeação prematura ou por motivo que está mais além da compreenção, Felicidade não nasceu óbvia. Nasceu sem as dores do parto e sem as contrações do ventre. Em vez de braços, abriu enormes asas; em vez de razão, exibiu espirais; em vez de olhos, arregalou uma estranha mirada atemporal. Sem tempo, braços e razão, tornou-se a filha preferida de todas as mulheres celestiais.
Mimada, acarinhada por séquito Santíssimo, Felicidade cresceu fora das vistas de Deus e da bravura eloquente dos santos.
Um dia, quando Deus resolveu faxinar o quarto que Felicidade nasceu, encontrou-a brincando com os dejetos dos mortais. Lembrou-se de Lilith e daquela estranha mania que ela tinha de querer ser feliz. "Não, esta criança não pode ser filha Dela! Lilith está presa nas profundezas do deserto, guardada por uma horda de demônios. Eu mesmo a pus lá!", Ele disse, sem muita certeza.
Felicidade, assustada por imperial presença, correu para se esconder debaixo do manto de Nossa Senhora e, ali, entre véus diáfanos de calor altíssimo, desabrochou humana, demasiado humana.
Por falta de deserto que a trancafiasse e demônios que a vigiassem, Deus a arremessou à Terra, num dia em que os corações dos mortais assombrearam em eclipse.
"Milagre!", a humanidade gritou em uníssono quando Felicidade iluminou os seus corações.
"Mania de ser feliz.", Deus resmungou lá do alto.

Uma Dama Quase Idosa


Um dia, Virgínia deu de andar cismada. Sentava calada num canto da sala e de lá não saía nem se Fátima a chamasse. Folheava um velho álbum de fotografias, enquanto resmungava aflita: “Deve estar por aqui aquela senhora que toda manhã cisma em me aparecer no espelho!



Ao mirar-me hoje no espelho
Descobri que a velhice me apavora
Ao passar batom nos lábios
O carmim espalhou-se por caminhos.
Eu sei que eram traços de rugas!
Mas preferi fingi-los vias.
Procurei a lisura da pele
E os dedos encontraram cristais.
Eu sei que eram escamações da idade!
Mas preferi fingi-los jóias.
Eu bem que devia ter desconfiado que as fadas andavam soltas no dia que Mel Cereleu chegou aqui em casa. O céu, numa abanada de rabo, abriu-se num jorro de anil salpicado de centelhas douradas. A avenca do jardim, insociável e rabujenta, arrepiou-se em verdes e afofou a terra para que Mel Cereléu passasse. As cambaxirras do telhado desenharam círculos alados sobre o encrespado molosso do corpo doce de Mel. Os gambás do sotão escalaram os galhos do abacateiro em flor só para ficarem perfumados e chegarem perto do pote dourado de Mel. Os lagartos, preguiçosos ao sol do meio-dia, abriram asas e viraram dragões.
Mel Cereléu chegou anunciando brisas, furacões e ventanias num bufar babado de mel. Trouxe estrelas dentro dos olhos que de vez em quando piscam cometas e favos de mel. Trouxe o pólem das flores que já não mais existem mas que insistem em provocar espirros de mel. Trouxe o arco-íris com os seus duendes e um pote de mel.
Mel Cereleu chegou como chegam as fadas: banhadas no ouro do mel. Chegou como chegam as sereias: espumadas nas águas do mel. Chegou como chegam os assombros: embrulhada na reticência de um céu de mel.

O Fantasma de Chet Baker


O Fantasma de Chet Baker


Eu devia ter desconfiado quando de repente a bolacha negra surgiu do nada naquela velha loja de livros velhíssimos. O que faria uma bolacha negra no meio de poeira e traças, exibindo-se em balé de trinta e três rotações? Seria algum recado da cantora de blues que se mostrava, mostrava não, se insinuava, nas últimas frases da Náusea de Sartre? Mas Sartre já tinha morrido e os anjos já o tinham entupido de sal de andrews! Simone já estava ao seu lado e já tinham até alugado um conjugado no céu! Não, não era a cantora de jazz nem o estômago delicado do filósofo. A bolacha vinha de algum lugar do Além que ficava além de minha nauseada imaginação.
Está certo, confesso, eu andava meio nauseada, meio desligada, tão meio desafinada que entrara na loja à cata de um livro qualquer de auto-ajuda - pode rir, é pra rir mesmo - de qualquer livro de no máximo oitenta páginas burramente distribuídas em cento e oitenta parágrafos que dissessem absolutamente nada. Nada do ser e do nada nem de filosofias que me confirmassem que não há nada mais cruel que ter idéias na cabeça. Eu precisava de um tudo estofado como um sofá das Casas Bahia, de preferência em suaves prestações, comprado com um cartão de crédito que o livrinho certamente me ensinaria como obter...
Foi no intervalo entre o desejo de me perder de "si" e me achar em "dó" de mim financiado pela Fininvest ou qualquer coisa que não valha que a bolacha rodopiou aos meus pés. Estiquei os olhos e lá estava Chet Baker, o fantasma que não era de Bakersville, mas uivava para a lua com um trumpete. Lá estava ele, saído do Nada da cantora da Náusea, do Uivo de Guinsberg e das estradas de Kerouac. Me olhou com aqueles olhos de belas heroínas e me chamou para dançar. Dançar?! Eu estava ali para encontrar o Graal da mediocridade em suaves prestações! Eu já tinha jogado fora todos os meus livros e os meus discos de jazz. Agora eu queria mais era jazer numa vida despreocupada, embalada por churrasco, cerveja e piadas idiotas. Eu queria aprender de cor todas as marcas de carros (parei no chevete), aparelhos eletrônicos e tralharias digitais. E lá me vinha Chet Baker numa hora dessas me chamar para dançar? Ele e sua heroína que continuassem a girar em trinta e três rotações. E que engolissem a agulha de diamante! Eu mesma já tinha jogado a vitrola fora...
Mas por artes da heroína de Chet ou do ácido lisérgico que os anjos cismam em misturar ao ar dos poetas, a bolacha começou a tocar sozinha. O que fazer? Como não fugir de "si" no "sol" de tanta música? E foi naquele segundo em que Chet começou a tocar que desisti da mediocridade medíocre de vencer na vida com titica na cabeça e, uivando os primeiros versos do Uivo, coloquei fogo na prateleira dos livros de auto-ajuda. Levei Chet para casa e dançamos a noite toda ao som de My Funny Valentine.

Chet

Chet

Home Sweet Home

Home Sweet Home
Que buraco é esse que me faz comer a geladeira?

Livros & Livrarias

Livros & Livrarias
Livrarias são janelas. Livros olham o mundo.Livrarias libertam. Livros revolucionam.

Senhoras do Santíssimo Feminino

Senhoras do Santíssimo Feminino
O poder sagrado Delas.

A Pergunta de Lacan

A Pergunta de Lacan
O mistério do gozo das mulheres

Afrodite & Panelas

Afrodite & Panelas
E no princípio era a GULA...

A Casa

A Casa
O mundo olha pelas nossas janelas...

Um Lance de Dados

Um Lance de Dados
Jamais abolirá o acaso

O Caldeirão

O Caldeirão
Ele não está no final do arco-íris

Armário e Gavetas

Armário e Gavetas
O que será que eles revelam?

Minha Cozinha

Minha Cozinha
Onde tudo começou.

Meus Segredos

Meus Segredos
Laços e refogados culinários

Nossas Luas

Nossas Luas
E são treze...

Seduções & Devaneios

Seduções & Devaneios
Eu o escreveria mil vezes!

Guadalupe, a Santíssima Mestiça

Guadalupe, a Santíssima Mestiça
Como amei descrevê-la!

Amor e Cozinha

Amor e Cozinha
Foi uma delícia escrevê-lo!