segunda-feira, 24 de março de 2008

Fátima e Virgínia

Nestes tempos de guerras santas e cruzadas modernas, tenho me exilado em Mangualde, lá pelos picos das montanhas que velam por Portugal. Enquanto no mundo de baixo os homens se deliciam com as artes da guerra, da prepotência e da desesperança, me farto em pastéis de clara e fios d'ovos do Aveiro.Vez por outra monto o lombo de uma mula e visito Fátima, a Virgem. Não vou ao santuário. Virgínia me ensinou um lugarzinho sossegado onde a Virgem "fica de folga" e brinca com as crianças. É um cantinho perdido entre o templo e um parque. Um pedaçinho de recreio, um tantinho de infância. Lá, Virgínia me apresenta toda orgulhosa para a sua grande amiga. "Espia Fátima, olha só como a miúda cresceu!".Em tempos de calmaria a Virgem sempre se dispõe a um papinho, mas os tempos não estão nada calmos e a pobre moça nem tempo tem para comer as guloseimas que as crianças lhe trazem. Sim, devo dizer que as virgens são muito gulosas. Elas adoram açúcar e mel. Detestam azedices e abominam as carnes sangrentas. Mas voltando ao assunto. Fátima anda muito preocupada. Seu rosto de menina já apresenta rugas e os olhos, antes vivos e curiosos, ficaram turvos como a fuligem destes tristes dias...
Virgínia, com os seus dedos roliços e mãos de camponesa, tira do bolso da saia um delicado terço. Um terço de contas de cristal. Ajoelha-se ao lado da virgem e começa a sussurrar ave-marias. Vez por outra as duas se entreolham e baixam os olhos para a terra. Eu, que não tenho um terço, rezo com pedrinhas. As crianças, com balas e pirulitos. Algumas mulheres rezam com anéis, estrelas e alianças de casamento. Outras, entoam fados de Amália.Do alto da terra as plantas rezam ao sabor do vento. O rio reza no correr das correntes. Os pássaros rezam construindo ninhos. O sol, esse eterno brincalhão, reza se escondendo por detrás das nuvens. O dia se faz escuro, mas não há medo: todos nós estamos ali, rezando por novos dias de sol.

2 comentários:

Eleonora Marino Duarte disse...

márcia,
escrevi um texto enorme para você, na postagem anterior... depois, não sei o que se deu, apareceu uma mensagem dizendo qualquer coisa a respeito de o comentário ter se perdido... estou rindo aqui!
de qualquer forma o que tinha de importante era: obrigada, seus livros tocaram minha natureza e me ajudaram a respirar!

quando voltei, havia esta postagem maravilhosa!

um beijo!

Leonor disse...

esta postagem como vocês dizem, diz-me mais do que posso se calhar explicar. em criança a minha família tinha casa em Fátima, que não tinha nada a ver com o que lá está agora e ao ler o seu texto de certo modo fez-me lembrar esses tempos, quase como se fizesse uma viagem no tempo, levando a minha cabeça de hoje...

boa semana

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