terça-feira, 11 de março de 2008

Feitiços & Cultura


Vita costumava ensinar feitiços para qualquer um que a procurasse. Gostava tanto de ensiná-los que com o tempo passou a transmiti-los mesmo que a pessoa não os solicitasse. Acabou virando uma doadora compulsiva. Ensinava feitiços para o leiteiro ( no seu tempo o leite era entregue a domicílio,embalado num vidro gorducho e transparente), para o homem da venda, para a lavadeira, para a vizinha, para a moça na fila do banco, e por incrivel que pareça, até para as criancinhas! E se o presidente da república resolvesse dar uma paradinha no seu portão (ela morava pertinho do palácio), ela sem dúvida lhe ensinaria um feitiço. Bem verdade que este seria muito mais trabalhoso ( mas afinal, ser presidente requer um certo trabalho, não é? ) e os ingredientes, quase que impossível de ser encontrados... A generosidade de Vita era tamanha, que acabou transpondo os limites da moral e dos bons costumes. E assim, numa simples espiralada do tempo, ela assumiu a esquerda. Para ela pouco importava a indissolubilidade dos casamentos, a heterossexualidade, a obediência, a rigidez ideológica, e todas as regras que tornam ( ? ) o homem civilizado. A civilização ficava bem longe do coração de Vita. E se ela tivesse lido "O Bom Selvagem", certamente o acrescentaria ao seu sobrenome. Passaria a se apresentar como Vitalina Leandro de Oliveira do Bom Selvagem. E de nada adiantariam os argumentos de que os sobrenomes exigem a origem da filiação pois Vita amava os bastardos. Este caminho à esquerda trouxe ainda mais gente à sua porta, e a sua casa, numa pacata rua de Larangeiras, acabou se tornando sede do Comitê do Liberou Geral. Os vizinhos, acostumados com as esquisitices de Vitalina, não se importaram com o estranho bando que todos os dias adentrava pelo portão da casa das araras ( Vitalina tinha duas). Acostumaram-se com os travestis, com as prostitutas, com os anarquistas, com os visionários, e com toda aquele gente "estranha" que o livro das regras costuma dizer que se deve evitar. Ninguém evitou nada e num passe de mágica a tradicional vizinhança aderiu ao bando. E assim criaram-se os laços mais inusitados. Dona Beatriz, uma pacata dona de casa, fiel e amante da ordem, acabou revelando para Gigi, uma prostituta da Rua Alice, a paixão que nutria pelo carteiro. Claudia, uma mocinha casta e fervorosamente cristã, descobriu Ártemis no olhar de Beatriz, uma acrobata de circo. Seu Manoel, o cisudo português do armazem, seguidor de Getúlio e levemente apaixonado por Salazar, abriu os ouvidos para os discursos de Paulo, um estudante de Filosofia que adorava Bakunin, e da noite pro dia adotou o Hay Gobierno, Soy Contra. E assim os feitiços foram se espalhando por cada vez mais gente. Ultrapassaram os limites da rua, do bairro, da cidade... e Vita pode então descansar em paz. Morreu feliz, certa de que havia passado o seu recado. O Comitê do Liberou Geral compreendera que os feitiços são simplesmente uma rasteira que se dá na cultura.

3 comentários:

Unknown disse...

oi adorei o blog é como uma linha do tempo mostrando diversas coisas, muito legal.

RoXy disse...

Nossa!!!
Realmente vc sempre nos surpreendendo...Adorei o blog, essa história é muito inspiradora tbm...
Bju e estarei sempre por aqui conferindo as novidades. =]

Unknown disse...

adorei a história, a interação das pessoas que conseguem até se despir de tudo é maravilhoso, amei o blog.Sula

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