quarta-feira, 23 de abril de 2008

Dali, Daqui, De Lá, De Acolá.

A variedade de universos que se escondia dentro dos banheiros da minha vida nunca me deixaram constrangida nem culpada pelas transformações. Essas transformações faziam parte da tradição mágica das mulheres de minha família. Assim, não me assustei quando aos cinco anos inundei as pastilhas brancas do assoalho com o sangue vívido e pastoso de uma fenda no pé, produzida pela lâmina vítrea de um caco de Chanel5. O âmbar do perfume mesclou-se com o vermelho do sangue, pontilhando ilhotas de lajotas portuguesas. Portugal nunca esteve tão próximo e tão concreto para mim. Naquele instante fui Carmina, Urraca, Afonsa, Domingas e todas as mulheres que me antecederam numa Lusitânia mais além da baía de Guanabara. Não tive medo. O sangue pingou os rostos ocultos na minha face.
Quando os adultos me encontraram no banheiro, gravando no chão as pegadas de um jogo sanguinolento de amarelinha, custaram a entender a razão do meu silêncio; e, sem argumentos, preferiram atribuí-lo ao choque. Eu estava em estado de choque, cortada pela lâmina de Oyá e fulminada pelo seu raio.
Somente Virgínia, a senhora avó da verde Mangualde, viu o rosto da Deusa refletido na transparência da água que vertia do chuveiro. Somente Virgínia viu as faces ocultas na face de uma menina que, no dia em que completava cinco anos, escalou as brenhas íngremes da Serra da Estrela, disfarçadas em bancos de madeira, e travestiu de neve a chuva de granizo que insistia em cair lá fora. E foi nessa hora em que enxergou séculos nos meus cinco anos que Virgínia disse: "A miúda cortou-se como se cortou minha mãe!".

Nesse dia, muitos anos antes de ler, Oui 2, L' arcangelisme scientifique de Salvador Dali, entendi as suas palavras:


Minha metamorfose é tradição, porque tradição é precisamente mudança e reinvenção de uma outra pele. Não se trata de uma cirurgia estética ou de uma mutilação, e sim de renascimento. Eu não renuncio a nada. Eu continuo.
+ + +
Texto extraído do meu livro A Casa da Bruxa, publicado pela Editora Planeta

terça-feira, 22 de abril de 2008

Bullgáricas


Eu nunca fui à Bulgária
e muito menos conheci um búlgaro.
De lá não pude trazer nada
E mesmo se pudesse
a alfândega confiscava.
Aliás, no dia que consegui o visto
o aeroporto estava em greve.
Fui então ao açougue e comprei um bife
um corte de bull sangrento
suculento
que na frigideira
como Zeus
me deu a Europa.

Saudades de Jorge Salomão




Pseudo blues
Jorge Salomão



Dentro de cada um


Tem mais mistérios do que pensa o outro


Uma louca paixão avassala a alma o mais que pode


O certo é incerto,


o incerto é uma estrada reta


De vez em quando acerto,


depois tropeço no meio da linha


Tem essa mágica


O dia nasce todo dia


Resta uma dúvida


O sol só vem de vez em quando


O certo é incerto,


o incerto é uma estrada reta


De vez em quando acerto


Depois tropeço no meio da linha
Cadê você, meu amigo? Estou com saudades.

Virgínia, Deus e Linguiças


Virgínia era católica. Não lia a Bíblia e era tão íntima de Deus que não o temia. Mas era católica e gostava de ser católica. E também era mãe de Maria que não era mãe de Jesus e por acaso me pariu. Era redonda que nem algodão doce. Dulcissíma. Aos domingos saía para ir a missa. Não entrava na igreja. Preferia as escadas. Aliás preferia mesmo o degrau de baixo. Gostava das coisas baixas, como os ventres e as tripas. Afinal, era portuguesa. Uma autêntica tripeira. Das tripas criava linguiças e das linguiças fazia romances. Que romances. Redondos, volumosos, apimentados... As linguiças eram cuidadosamente amarradas num comprido cordão. Um terço sem contas e de carne. Ah! as carnes... Virgínia conhecia como ninguém os temperos e volumes das carnes. Unia as linguiças enquanto falava e rezava:

Senhora menina, mãe de todas as carnes
Mãe do sangue que escorre entre as pernas
e se eleva até os confins das tripas.
Senhora das ruas,
das meretrizes,
dos perdidos.
Abençoa a carne,
a gordura, e os ossos.

Um dia me chamou para com ela ir a missa. Levou um terço de linguiças. O padre, ao vê-la sentada no primeiro degrau da escada, junto aos mendigos , cegos, aleijados, e prostitudas, chamou-a para entrar na Igreja. Não obteve resposta. Virgínia não escutava os sacerdotes. E não era nem por convicção ou simpatia. Os seus ouvidos, desde que começara a criar linguiças, eram entupidos para a fala do sacerdócio. Mas não se importava. Dizia que estes falavam tão alto que ensurdeciam até Deus...

Você Tem Fome de Quê?

Há alguns dias me faço esta pergunta. Primeiro, de prima, me bateu a certeza de que realmente sofro de fome anoréxica. Contraditório? Pois é, de segunda, veio a certeza de que por vezes a fome é contraditória. Você tem fome, acha que está faminto e sai por aí tapando buracos e buracos no estômago, rins, fígado, pâncreas, cérebro, alma... mas não é fome. É puro entojo, como diria minha avó Vita. E o que é entojo? Pura anorexia. Cheguei a quase brilhante conclusão de que a fome de humanidade foi tão grande, tão descomunal, que não pode ser saciada. Resultado: virei anoréxica. Estou entojada, com o estômago revirado, ouvindo os roncos da boca da alma.

domingo, 20 de abril de 2008

Altares


Nas casas de minhas avós os altares se espalhavam por todos os cantos. "Nichos de recordações", Vitalina explicava a qualquer visita que perguntava. "Saudades de Portugal", Virgínia respondia, oferecendo ao curioso uma taça de ovos nevados.

As respostas chegavam aos ouvidos das visitas como excêntricas heresias. "Perversão carola", eu cheguei a ouvir de um vizinho de Vitalina, um senhor que batera à sua porta para reclamar da bagunça que as crianças da rua faziam em seu jardim e se assustara com o pequeno altar que Vitalina erguera sobre um pomposo rádio de madeira. Sobre ele, um enorme cachorro de porcelana branca, um copo de água, imagens de Nossa Senhora Aparecida, São Benedito, Iemanjá, São Cosme e São Damião, um anjo de asa quebrada, um retrato de minha falecida tia Nadir e uma foto de Francisco Alves, o cantor das multidões. Tudo isso sobre um escandaloso pano de crochê turquesa, arrematado nas pontas por exibidas rosas vermelhas.


"Elogio à cafonice", talvez dissesse alguém com rígidas normas de decoração. "Tropicalismo católico", certamente Vitalina replicaria. Se os altares eram ou não heresia, cafonice ou tropicalismo cristão, isso não vinha ao caso. O importante é que eles funcionavam. E como!


Se analisado por estudiosos de teologia, certamente o "funcionamento" também seria considerado uma heresia, mas, como nenhum teólogo jamais visitou as casas de minhas avós, os altares seguiam livres, operando pequenos (e grandes) milagres.


O altar fonográfico de Vitalina, por artes dos latidos do cão de São Lázaro, pela persistência de Nossa Senhora Aparecida ou pelos acordes afinados de Francisco Alves, endireitou a gagueira de Mauro, meu irmão. Na época muita gente se recusou a admitir que um rádio pudesse operar tamanho milagre. "Desconjuro, dona Vitalina, de onde já se viu rádio fazer milagre?", dizia Benedita, sua amiga fiel, benzendo-se.


O que as pessoas não percebiam é que, por mais carnavalizados e estranhos que fossem, naqueles altares residia "o poder do impossível", como Virgínia costumava dizer. Ali, entre imagens sacras, flores, retratos, velas, botões, medalhas, moedas, galos de cerâmica, notas de jogo de bicho, lembrancinhas de aniversário e quinquilharias, Vitalina e Virgínia se fundiam com o coração do mundo, o coração da Senhora dos Muitos Olhos e Braços.


E assim fundidas elas agarravam o tempo e dele faziam o que queriam. Esticavam o futuro, atravessavam o presente, cerziam o passado e faziam de conta que podiam voar e mover montanhas.


Um dia, sem muito espalhafato e poucas testemunhas, nasceram-lhes asas. Voaram e sumiram nas nuvens em busca da Mãe.


Vez por outra elas me visitam nos altares que me ensinaram a erguer...





Texto extraído do meu livro Guadalupe e as Bruxas publicado pela Editora Planeta.

A Visita

Anunciou sua visita sem nenhuma cerimônia. Não esperou convite e foi logo se convidando. Eu, cá do meu canto, não disse que sim nem que não: esperei que o interesse se extinguisse e aquela visita, que não foi convidada, desistisse de vir. Não dei ouvidos aos meus fantasmas aflitos a me pedirem para que eu fechasse todas as portas e as janelas, e dependurasse um cartaz no portão: CUIDADO! CÃES FEROZES! Os dias se passaram e eu já tinha quase me esquecido dela, quando ela chegou. Mas uma vez não levei em conta os sinais de mau agouro. Fingi que não vi a sombra velando o olhar do motorista do taxi que a trouxera. Tapei os ouvidos para o canto de uma coruja em pleno meio-dia. Fechei os olhos para o sol que correu a se esconder atrás de uma nuvem e para o cadáver de um sapo que o táxi atropelara bem defronte do portão. Abri a porta e deixei que a Inveja entrasse. Entrou humilde, fingindo castidade. Distribuiu presentes e sorrisos numa boca sem dentes. Olhou para todos os cantos da casa. Sentou-se na sala e quis saber coisas. Eu bem que sabia que as suas perguntas seriam comidas por um gato. Não dei importância e deixei que a Senhora Inveja comesse da minha comida e depois a vomitasse, proclamando propiedade do vômito. Lembrei de Vitalina me dizendo que "a Inveja é uma senhora sem rosto, corpo, alma, e pousada, que vaga pelo mundo roubando a face e o lar do alheio". No momento em que se despediu, vi o meu rosto refletido na sua face distorcida. A máscara apertada não lhe coubera direito. O meu sorriso não cabia na sua boca sem dentes. O meu olhar não encaixou-se nos dois buracos do seu crânio... Partiu, deixando no ar o cheiro fétido da mentira. Um aroma que de tão medonho, assustou a fumaça negra do ônibus que a levou de volta para os pântanos da perfídia.

sábado, 19 de abril de 2008

Spell

Preciso subir ao sótão
procurar o meu caldeirão,
desenferrujar as agulhas
e colher sangue de dragão.
Preciso do trapo de uma saia
e algumas bagas de faia.
Preciso parar o tempo
secar o mar.
Colher tremoços em Portugal
.



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Este poema foi escrito para uma grande amiga, Maria Teresa Horta, uma escritora maravilhosa e poderosa feiticeira. Quem ainda não leu "Novas Cartas Portuguesas" não sabe o que está perdendo...


E para dar água na boca, eis um poema (e a foto) de Maria Teresa:

Poema Sobre a Recusa

Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
nem na polpa dos meus dedos
sem ter formado o afago
sem termos sido a cidade
nem termos rasgado pedras
sem descobrirmos a cor
nem o interior da erva
Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
minha raiva de ternura
meu ódio de conhecer-te
minha alegria profunda






















A Metamorfose


Quando Gregório Silva despertou numa certa manhã em que, no rádio, o chefe da nação tecia elogios a Bush, viu surgir o primeiro sinal da metamorfose: duas estúpidas anteninhas bem no alto da cabeça que o obrigaram a ir para o escritório com um gorro mais estúpido ainda. Se tivesse lido Kafka, ficaria em casa, daria uma desculpa ao chefe da repartição e não se prestaria a tal vexame. Mas como não lera e ainda por cima era só mais um brasileiro aterrado com o desemprego, preferiu pagar o mico e garantir o parco salário.
Se a pressa de chegar ao trabalho não lhe fosse prioridade máxima (os tempos eram duros e, por qualquer bobeira, o sujeito dançava), Gregório veria que as ruas estavam apinhadas de gorros. Mas o medo do desemprego o impedia até de olhar para os lados.
Assim, com os olhos voltados para uma frente que corria o risco de desaparecer a qualquer momento, Gregório foi vivendo a vida com a cabeça enfiada num estúpido gorro. Até que lá pelos meados do ano, quando o escalão maior do Estado decidia expulsões ingratas, legalizações dos transgênicos, reformas nebulosas, política nuclear e a maquiagem da lei da mordaça, surgiu o segundo sinal da metamorfose: duas asas asquerosamente cascudas que o obrigaram a tirar do armário o velho fraque do casamento e com ele ir vestido para o trabalho. Se Gregório tivesse lido
Kafka, teria a certeza de que estava se transformando em barata. Mas como o seu tempo era curto para as leituras e já deixara de ser dinheiro há muito tempo, preferiu seguir a sua vidinha de dívidas e prestações, achando que as asas não passavam de um mero desvio da coluna.
Ao contrário do herói de
Kafka, Gregório não podia se dar ao luxo de se trancar num quarto e virar barata. O antigo chefe já havia dançado e entrara no seu lugar a esposa de um vereador, amigo do diretor. E foi exatamente a nomeação da mulher que provocou mais uma etapa da sua metamorfose: duas patas cabeludas substituíram os seus braços. Como havia sido transferido do almoxarifado (a nova chefe, num acesso de faxinice aguda, eliminara todo o estoque de medicamentos), Gregório logo se adaptou às patas.
Acostumado com a naturalidade brasileira das adaptações, Gregório foi seguindo a vida aos trancos e barrancos. Às vezes, chegava até a agradecer a metamorfose. Sem precisar gastar dinheiro com nenhuma cirurgia, seu estômago encolhera e a falta de alimento na geladeira já não o assustava mais. O gorro estúpido já não lhe causava constrangimento, pois da noite para o dia virara moda.
Mas como adaptação de classe média dura pouco, um dia , ao ver na
TV o congresso reunido por uma convocação extra que custou ao país os olhos da cara, Gregório se viu totalmente transformado em barata. Olhou para os lados e viu a mulher, os filhos e a empregada arrastando-se pelos cômodos da casa, exatamente como ele. Arrastou-se até a janela e viu a rua apinhada de insetos. E quando já começava a tecer motivos para mais uma adaptação, viu na TV uma cena dantesca: os parlamentares haviam se transformado em gigantescas latas de inseticida!

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Foolices


O dia amanhece como um poeta buscando rimas
como um escafandrista catando pistas no fundo do mar.
Amanhece um pouco além da cortina
entre a curva da embriaguez
e o comprimido de aspirina.

E a Bola Rolou

Quando os dois chegaram à cidade, matando bola no peito, fazendo firula e prometendo gols, bem que Zefa desconfiou! Tentou avisar a torcida, sabotou a tranca do vestiário, dopou o técnico, mas não adiantou. Os dois entraram no campo sem bola.
Se a torcida esticasse um pouco mais os olhos, se deixasse de agitar tanto as bandeiras e voltasse a razão para o campo, pela primeira vez veria o Maracanã sem bola. Mas não olhou. O jogo terminou zero a zero.
Zefa, que da vida já tinha visto de um tudo, olhou para o Cristo Redentor e se benzeu três vezes. O Cristo, por rigidez geológica ou por desgosto de torcedor, mandou-a procurar explicação nos quintos do inferno, esquecendo-se de que ela não tinha dinheiro para a passagem. O jeito foi ir a pé.
Caminhou trezentas noites e trezentos dias, e não havia jeito de chegar ao inferno. Vez por outra parava "pra descansar o lombo e tomar um fresco", como ela mesma dizia. Nessas horas, proseava com as pessoas e tomava ciência dos acontecidos no campo. Horror, só horror...
"Mudaram de time quatro vezes!", um dizia. "Em vez de apito, o juiz corre pelo campo, carregando um livro preto e jurando sobre ele", outro comentava. "Rasparam os cofres do time", outro mais confidenciava, olhando pros lados com medo. "Confiscaram o pastel chinês e fizeram suco do pasteleiro", denunciava um outro, sem querer se identificar. Zefa ouvia as notícias enquanto roía um pão sem mortadela, duro como a cabeça de torcedor...
Depois de caminhar por mais alguns dias e noites, chegou finalmente no endereço do Cruz-Credo. Tocou a campainha, esperou sete minutos e só então foi recebida.
O Diabo - um sujeito visivelmente emergente, labioso, escorregadio e maneiroso (um pouco acima do peso e baixo de estatura, devo confessar) - era a cara escrita e escarrada da dupla pereba. Zefa se benzeu seiscentas e sessenta e seis vezes e, por pouco, muito pouco, não explodiu o inferno. Saiu correndo, agarrada ao terço da finada avó, fula da vida por ter sido enganada por Cristo.
Não sei se pelas linhas tortas de Deus ou por medo do castigo divino, a raiva durou pouco e Zefa voltou pra cidade sem olhar pra trás (se olhasse, veria que o inferno se recompõe na velocidade do fogo e que os demônios já preparavam as faixas para o próximo campeonato). Dessa vez não parou pra descansar o lombo, tomar um fresco, assuntar notícias e roer pão duro. E mesmo se o fizesse, de nada adiantaria: os poucos lugares tranqüilos tinham ido pro espaço; as pessoas haviam se trancado dentro de suas casas, vedado as janelas e blindado as portas; as notícias despencavam dos helicópteros, em rajadas de pétalas de rosas que feriam mais do que as balas das metralhadoras que cruzavam o céu; e o pão duro fora roído no meio do caminho. "Dia de jogo", Zefa pensou com seus botões ao ver a cidade vazia.
Procurou no bolso um ingresso, consultou o relógio e viu que ainda dava tempo de impedir que os dois pernas de pau entrassem no campo. Ledo engano! Quando chegou no estádio, foi barrada pela galera amontoada nas grades da geral: sob custódia. Negociou argumentos e se valeu até da religião. Não houve santo que arredasse o pé da multidão encarcerada em fúria.
Talvez por sadismo divino ou por falso milagre súbito, Zefa encontrou uma brecha e cruzou as grades. Mas era tarde, muito tarde. Ao olhar o campo, viu o que vira no dia em que os cartolas e a torcida apresentaram os dois jogadores: no verdor do gramado uma cabeça humana, empapada em sangue e tripas, rolava entre dribles e firulas.
Ao final do segundo tempo, com a torcida muda e aterrorizada, veio o gol da vitória com sabor amargo de derrota. Ninguém comemorou. O gandula recolheu as cabeças espalhadas no campo e os dois jogadores se recolheram ao vestiário. Não deram entrevistas. Não comentaram o jogo. Saíram pelo portão lateral. Mudos e arrogantes, a fazer planos para o Campeonato Nacional...
Este texto foi escrito quando um bizarro casal governava o Rio de Janeiro.

domingo, 6 de abril de 2008

Morte Insúbita

Naquela manhã, João já estava morto quando saiu de casa. E de nada adiantou o sol a lhe machucar as vistas, o cheiro do café ralo a embrulhar o estômago, o pão duro a quebrar os poucos dentes que tinha, a gilete enferrujada a ziguezaguear pelas alamedas rugosas da face que já não reconhecia no espelho, porque a Morte já havia chegado, faz tempo.
Por teimosia ou por falta de dinheiro para o enterro, não foi enterrado. Apodreceu sem fedor, inodoro, sem vermes a comer uma carne que já não tinha, sem moscas a ciscar açúcar em tanta azedura. Azedo. Virou morto-azedo. Um cadáver amargoso a varejear pelas ruas, em busca da vida doce que a televisão prometia. Um cadáver que de tão morto, humilhado e ofendido, não encontrou forças para morrer morrido. E assim, sem morte morrida nem vida vivida, virou vácuo. E como o vazio é uma sacola cheia de nada, se acostumou com a metafísica substância. Tinha nada, recebia nada, esperava nada, sonhava nada, vivia nada.
Por nadificação ou por aposentadoria a nadificar o tudo de suor que lascou numa época em que foi quase vivo, acostumou-se com a falta de comida, a falta de gosto, a falta de remédios, a falta de dentes, a falta de dignidade, a falta de bolsos, a falta de luz, a falta de conforto, a falta de si e até a falta que ele para os outros não fazia. Virou falta plena. Tão faltoso que nem dor mais sentia.
Se fosse eu ou você a viver o nada, certamente o faríamos por filosofia, mas João era diferente e o vivia por pura agonia. Uma agonia sem as angústias da psicologia. Agonia crua, sangrenta e mal passada como os bifes que ele não comia. Agonia agoniada como as contas claustrofóbicas na gaveta. Agonia assombrada como as parcas moedas a balançar no bolso. Agonia de um dente a doer sem estar na boca, de um coração a arder sem estar no peito, de um tumor a crescer dentro de um cérebro que perdeu a cabeça...
Por piedade de um Deus descrente dos homens ou por um tico de esperança que ainda tinha, João saiu de manhã para receber a aposentadoria. Arrastou as pernas que já não tinha, por avenidas, ruas, becos e vielas. Cruzou o mundo dos vivos fazendo esforço para não fazer barulho nem incomodar. Em silêncio se postou na fila do banco, que de tão grande virava a calçada. Não reclamou (o nada nunca reclama ) e penou seis horas debaixo do sol. Quando chegou ao guichê, Deus se revelou em divina maldade e o matou de susto: a aposentadoria fora suspensa por artimanhas da burocracia.

sábado, 5 de abril de 2008

Maria e o Tinhoso

Mesmo faltando-lhe quase todos os dentes, Maria era bonita. Uma beleza matuta, envergonhada, com cara de riacho e cheiro de roupa quarando ao sol. Não era de muitas palavras e olhava pro mundo pedindo licença. Como se os olhos incomodassem. Não. Como se ela fosse um incômodo que incomodava sem ela saber porquê. Assim, incomodada por incomodar, a ela só restava um enorme par de olhos que olhavam sem olhar. Olhava de beira, margeando o visível, esgueirando o foco, e procurando o chão. Chegou como as Marias costumam chegar : invisíveis, anônimas, desterradas. Tocou a campainha, entrou, e foi logo lavando a louça e limpando as janelas. Não foi preciso ninguém mandar. Uma empregada exemplar. Ninguém lhe perguntou o sobrenome e o nome foi só pra constar. Depois arrumou as tralhas no quartinho dos fundos, pendurou o terço, uma fotografia de sabe-se lá quem, e encolheu-se na cama. Dormiu de banda, retorcida como um galho torto, uma pedra lascada e um cotoco de gente. Sonhou com o sertão, com a terra dos olhos que olham sem olhar. Se fosse eu ou você a sonhar com esqueletos barrigudos e cadávares embalados em rede, certamente seria um pesadelo, mas pra Maria era sonho. Acordou antes do sol acordar. Pisou no chão com cuidado, temendo que o chão fosse se incomodar. Arrastou-se até a cozinha e preparou o café. Não tomou. Esperou que todos acordassem e lhe deixassem o resto. Que pra Maria não era resto, era o que tinha pra comer neste mundo de Deus. Os patrões não gostaram. Aguado demais! Abaixou a cabeça e sorriu. Maria sorria quando era pra chorar. Voltou ao fogão e fez tudo de novo, sem reclamar. Uma empregada exemplar! Vez por outra conversava comigo, me contava histórias dos doze irmãos que ficaram no norte, lá pelas bandas da Paraíba. Narrava histórias de defuntos e mulas que soltavam fogo pelas ventas. De si, pouco falava. Não por não ter o que contar e sim por não querer incomodar. E se eu por acaso insistisse, ela respondia : "Que vida pode ter alguém que nem chegou a nascer?" E de nada adiantava tentar convencê-la deste engano, pois de tanto conviver com a morte, defunto, mula sem cabeça, cadáver barrigudo, ela acabou por achar que o mundo era dividido entre os mortos e os nascidos. E se fosse eu ou você a elaborar este pensamento, seria metafísica, mas pra Maria era fado mesmo! Um dia Maria chegou mais animada do que de costume. Os olhos brilhavam e me olhavam. Perguntei-lhe o motivo de tanta alegria, e ela disse que um herói ia chegar de avião. Acostumada com as histórias das almas penadas, achei que o herói de avião era coisa da sua imaginação. Mas não era! O filho do patrão, um sujeito metido a marxista, tiete de Fidel e Che, ia voltar de uma excursão lá pelos confins da Europa. Maria pouco sabia de Marx, mas pelo que ouvia por detrás das portas, concluiu que ele era o anjo de Conselheiro, e o filho do patrão, o homem que ia fazer o mar virar sertão. De nada adiantou previni-la de uma provável decepção. Maria cismou que o rapaz era o anjo da sua tão esperada concepção. Até que chegou o dia do retorno do tal herói. Chegou empinado, ereto como um bambu, e nem olhou pra Maria e muito menos lhe deu bom-dia. Passou por ela sem vê-la, deixando um rastro gelado e uma catinga de senhor de engenho. Maria conhecia o cheiro e o associava ao chifrudo. Benzeu-se três vezes e jogou sal pelas costas. O herói era o tinhoso. Padre Cicero já havia avisado... O tempo passou com Maria evitando ser olhada pelo canhoto. Tremia de medo quando ele passava ao seu lado, e um dia chegou até ver o rabo do coisa ruim. Pensou em ir embora, mas lembrou que não tinha pra onde ir. Foi ficando. Ela e o Tinhoso. O Tinhoso e Ela. De noite, rezava pra Padre Cicero, Conselheiro, e São Marx ( nunca consegui convencê-la de que Marx tinha horror às santidades) . Depois agarrava o terço, fechava os olhos, e lá se ia pras bandas dos mortos, dos não nascidos... Um dia, o herói que não era herói e era o tinhoso acusou-a de roubar uma toalha. Vixe! A toalha que secou os pêlos do canhoto? A barriga embrulhou e os cabelos arrepiaram. Mas ninguém percebeu. Foi mandada embora no meio da noite. Não tinha nenhum lugar para ir. Saiu carregando a trouxa, um disco do Roberto Carlos, e um porta retrato com uma foto de São Marx. Nunca mais foi vista. Afinal, ela nem tinha nascido. O Tinhoso? Ah!... esse anda por aí, muito bem empregado, presidindo uma estatal.


Foto de Sebastião Salgado

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Bolo de Santa Marta


Ingredientes

1 xícara de manteiga

1 3/4 xícara de açúcar

1 colher de chá de essência de baunilha

3 ovos e 1 gema

3 xícaras de farinha de trigo

2 colheres de chá de fermento

1/2 colher de chá de sal

3/4 de xícara de leite

1 xícara de amêndoas picadas



Modo de Fazer

Bata a manteiga com o açúcar até obter um creme leve e fofo. Adicione a baunilha, os ovos e a gema extra, batendo vigorosamente até obter uma mistura homogênea. Acrescente os demais ingredientes e bata por mais alguns minutos. Asse em forno moderado, previamente aquecido, por aproximadamente 45 minutos.



Dádiva Mágica

Um dia eu estava pesquisando a vida das Santíssimas e descobri que Santa Marta é a protetora da cozinha e responsável pela fartura da despensa. Resolvi então afixar uma imagem Dela na porta da despensa. O resultado não poderia ser melhor; abundou alimento na casa. E como Ela demonstrava um especial prazer em me ver fazendo esse bolo - acredite, Sua imagem balançava, ficava mais colorida e às vezes até despregava da porta -, decidi dedicá-lo exclusivamente a Ela. Quando asso esse bolo, convido-a para sentar à mesa da cozinha e me ajudar na feitura, enquanto agradeço por tudo que Ela me tem oferecido.
texto extraído do meu livro A Cozinha Mágica de Marcia Frazão, publicado pela Editora Ediouro

O Sexo de Deus

Quando Ele me revelou o rosto na segunda-feira do último carnaval, custei a acreditar que fosse o Santíssimo. Afinal, durante toda a minha vida eu escutara histórias que narravam as aparições solitárias, os auto flagelamentos, os jejuns de quarenta dias, as visões da clausura e até a épica de Charlston Heston travestido em Moisés. Mas no carnaval!? Espalhado no pipocar do trio elétrico, vestido de mulher em plena avenida Rio Branco, tocando tamborim na bateria da Camisa Verde, esguichando água-de-cheiro num cordão de Olinda? Ah, não!!! A aparição não correspondia em nada às lições do catecismo, aos relatos episcopais e muito menos aos roteiros de Hollywood. Se ao menos se avistasse por perto um deserto escaldando tentações, se houvesse ao dispor um topo de montanha e umas tábuas de pedra, uma cela de convento ou até mesmo um vislumbre de luz em meio às trevas... Mas não, Deus tinha que achar de anunciar a Sua Santíssima presença com ziriguidum e telecoteco!
Não contente com tal anunciação, Deus vestiu uma camisa listrada e saiu por aí a jogar confete e serpentina nas meninas. De vez em quando, cansado do sexo dos meninos, vestia os balangandãs e as rendas da baiana, só pra ver o que é que a baiana tem. E foi numa hora de troca-troca de fantasia que Deus me deu uma segunda revelação: Ele é menino e menina.
Eu, do alto do pensamento tomista, vi os primeiros tomos despencarem da estante quando O flagrei mergulhado num copo de cerveja e com a boca (e que boca!) lambusada do azeite que escorria de um pastel de carne. Naquela hora não deu para recorrer aos compêndios da escolástica, não deu para pedir socorro a Agostinho (que a essa altura se confessava no colo de uma passista da Mangueira), não deu para encontrar Maria nem Gabriel. A Virgem tinha saído cedo de casa, levando o menino Jesus - uma gracinha de criança, fantasiada de índio- para ver a banda passar, e Gabriel andava sumido, enfiado sabe-se lá onde, desde a noite de sexta-feira...
Além de abandonada pelos santos, me vi sem pai nem mãe quando procurei a filosofia. Ela, vexada pela afirmação do espírito e pela eliminação do corpo de Deus, se enfurnara num retiro filosófico, deixando na secretária eletrônica o aviso que só retornaria na quarta-feira de cinzas. Tive então que mirar o fato na seca, sem anestesia. E lá estava Ele, de corpo e alma, espalhado entre milhões de rostos que berravam Mamãe Eu Quero. Foi nesse instante que um jato de lança-perfume reativou o inconsciente e descobri que Deus é a apoteose do Desejo de Lacan. Deus, além de Onipresente e Oniciente, também é Inconsciente e Desejo.
Quando decifrei o quero do mamãe eu quero, me benzi três vezes, ciente de ter revelado o irrevelável. Aguardei os inquisidores com a dignidade própria dos pecadores. A espera foi longa. Além do trânsito ficar um caos no carnaval e por isso ter que dar voltas e voltas pelas ruas da cidade, a Inquisição ainda teve que dar um pulinho nos barracões das Escolas para tapar a sexualidade divina de algumas alegorias, alas e destaques.
Enquanto aguardava a chegada dos Guardiões da Fé, da Moral e dos Bons Costumes, liguei a televisão. E lá estava Ele outra vez a revelar-Se desejo na voz de Margareth Menezes, na Bahia de Caetano, João Gilberto, Dona Canô e Dorival, nas tranças de Gil e no rodopio dos abadás seguindo Ivete, Daniela, Dodô e Osmar. Lá estava Deus, do alto de um trio elétrico a revelar um outro mistério: Deus é brasileiro em sotaque, acento e desejo.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Pane Aqualouca

Eles flutuam sobre as toalhas
nas pregas imersas no anil do tanque.
Conhecem os desvios óticos
que confundem o mar com o mangue.
São panos embranquecidos pelos dedos
de mulheres mortas.
Damas que esfregam sonhos na bacia
e estendem a luxúria em varais.
São retalhos esquizofrênicos
espantalhos cênicos
notas de um blues no palco.
São falos das lavadeiras
que escorregam no sabão da heroína
de um pano de prato drogado.

Levei muito tempo para descobrir a razão do desemparelhamento dos brincos de Vitalina: ela amava a liberdade.

Uma Avó Inventada

Vitalina amava as invencionices. Gostava de mirar o céu e inventar estrelas. E se alguém porventura ( ou por desgraça ) lhe dissesse que não se pode olhar o céu e inventar cometas, ela certamente olharia o infeliz e inventaria mais um tolo. Para ela, o mundo não passava de uma invenção dos Deuses que imploravam aos inventados que inventassem coisas. E Vitalina obedeceu e inventou. Criou um mundo novo, um admirável mundo não tão novo, propício aos precipícios das invenções ( ou invencionices, como ela mesma falava ). Equilibrou-se num pé de vento, levantou as saias e pariu rebentos. Não gostava de chamá-los de filhos e inventou novas palavras que os significasse. Alvaro, o pequeno, foi chamado de Vico assim que mostrou a cabeça na arrebentação da vagina. Nazira virou Nazir, a amazona. E assim os rebentos se sucederam nomeados e desmamados. O primeiro leite foi retirado da Via Láctea, escorrido das tetas de uma vaca sagrada que adorava comer torresmo. Um leite gorduroso, inadequado como as invencionices das mães. Mas Vitalina não ligou e seguiu inventando carnes e gorduras. O mundo era então um filé gordo e mal passado. E se alguém, por ventura ( ou desgraça ) lhe dissesse que só os Deuses digerem os filhos, ela inventava um novo profano... E foi assim que, por artes das invencionices de Vitalina ou do ventre de Maria, arrebentei num setembro. Mamei nas tetas de uma vaca negra que Vitalina trouxera de uma galáxia que inventara. Maria dormia enquanto eu mamava. Dormia um sono inventado, criado por uma velha inventada para inventar estrelas e não ter medo de Deus.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Sono de Açúcar

Um dia, logo após uma tempestade que quase varreu o Rio de Janeiro, Maria Luiza caiu num sono profundo. A princípio, ninguém percebeu a profundeza do sono, já que todos estavam ocupados com as notícias da tempestade. Ruas foram varridas pelas águas, palmeiras se transformaram em pinguelas no meio do asfalto, móveis viraram barcos e até pessoas foram engolidas pelos bueiros. Alguns juravam ter visto polvos emergirem das poças e jacarés saírem dos ralos. Uma senhora chegou a afirmar ter visto Nossa Senhora da Conceição brotar de um chafariz e curar um enfermo. Se curou ou não, até hoje não se sabe; o chafariz continua na praça e vez por outra amanhece cercado de velas e santinhos de agradecimento.
Enquanto todo mundo se ocupava com a tragédia que assolara a cidade, Maria Luiza dormia. Dormiu por três noites e três dias. Ninguém achou estranho. Vera chegou a dizer que chuva dava sono. E deu sono. Muito sono. Ninguém ousou acordá-la, e ela acabou acordando sozinha, com uma baita fome de doces. Comeu todas as compotas da casa, depois as geléias e por fim todo o açúcar da despensa. Ninguém achou estranho. Maria Luiza tinha hábitos estranhos. Depois de tanta comilança, caiu outra vez no sono. Mais uma vez ninguém achou estranho e deixou que ela dormisse. Acordou quatro dias depois, trazendo consigo um menino invisível, um moleque chamado Manequinho da Praia. Dessa vez, estranharam e chamaram os doutores. Os médicos disseram que ela sofria de desordem da personalidade. Vitalina balançou negativamente a cabeça e disse: "Ela é médium."
Depois da tempestade sonífera, Manequinho passou a conviver na casa. Vez por outra, quando o céu enegrecia e os raios gritavam no céu, nós lhe dávamos um doce. A chuva caía mansa e não enchia a cidade.


Texto extraído do meu livro "Amor se Faz na Cozinha", publicado pela Editora Bertrand

terça-feira, 1 de abril de 2008

Luiza & Mary Stuart



Durante a velhice, Luiza preparou-se para uma outra vida, em que seria rainha ou, na pior das hipóteses, princesa. Embora não tivesse nem mesmo um remoto laço genealógico com Mary Stuart, agia como se lhe fosse próxima. Não sei se por ser da Escócia e a outra do Estácio, as duas eram muito parecidas. Mary Stuart não ficou redonda como Luiza, mas em compensação não escutou as rodas de samba do Estácio. Mary Stuart nasceu rainha. Luiza nasceu para ser rainha numa outra vida. Apesar das pequenas diferenças, eram irritantemente parecidas. Mary amava as golas, Luiza as detestava. Mary arrastava saias negras pelos aposentos do palácio; Luiza, pelos becos do Estácio. Mary caçava raposas com cachorros; Luiza caçava as dezenas do cachorro. Mary usava uma coroa de ouro; Luiza, uma trança enrolada. Mary guardava doces numa caixinha de prata; Luiza, numa lata. Mary reinava em nome de Cristo, Luiza tinha um Cristo que reinava na parede da sala. Mary dicidia a coroa com a irmã; Luiza, uma parca aposentadoria. Mary casou com um rei; Luiza, com um operário. Mary sentava-se num trono; Luiza, numa cadeira Chipendale. Mary era Stuart; Luiza, Correa.

Quando se encontrou com a Ossuda, Luiza pediu-lhe que não a fizesse rainha. Preferiu uma cama, pois estava muito cansada.



Texto extraído do meu livro, Amor se Faz na Cozinha, publicado pela Editora Bertrand

Ética Divina

Quem o visse passar pela rua certamente o confundiria com um velho. Afinal, se considerarmos a velhice como um mero acúmulo de anos, cabelos brancos, ossos carcomidos, rugas e tremores diversos, sem dúvida ele não passava de mais um velho em meio a tantos. Inofensivo, trêmulo em isquemias, semi cego por águas turvas de gosmentas cataratas, ossos curvados em arco prestes a se partir; tudo isso dava a ele um vil disfarce de velhice. Mas não era velho; era roto.
Puído exibia na alma quase cem retalhos de vilania. Vis, dissimulados, escorregadios, ardilosos, medonhos, odientos e dados à mentira, ao roubo e ao engodo, os retalhos se pensavam eternos e resguardados da justiça.
Em seus quase cem anos de ignóbil cerzimento, não plantou árvores, não escreveu livros nem desenhou lembranças que valessem a pena lembrar. Por vilania tamanha nem o Diabo, nem Deus nem a Ossuda o quiseram levar. "Ética divina", os três alegaram voltando-lhe as costas para que na Terra apodrecesse como esterco maldito a alimentar frutos podres.

Chet

Chet

Home Sweet Home

Home Sweet Home
Que buraco é esse que me faz comer a geladeira?

Livros & Livrarias

Livros & Livrarias
Livrarias são janelas. Livros olham o mundo.Livrarias libertam. Livros revolucionam.

Senhoras do Santíssimo Feminino

Senhoras do Santíssimo Feminino
O poder sagrado Delas.

A Pergunta de Lacan

A Pergunta de Lacan
O mistério do gozo das mulheres

Afrodite & Panelas

Afrodite & Panelas
E no princípio era a GULA...

A Casa

A Casa
O mundo olha pelas nossas janelas...

Um Lance de Dados

Um Lance de Dados
Jamais abolirá o acaso

O Caldeirão

O Caldeirão
Ele não está no final do arco-íris

Armário e Gavetas

Armário e Gavetas
O que será que eles revelam?

Minha Cozinha

Minha Cozinha
Onde tudo começou.

Meus Segredos

Meus Segredos
Laços e refogados culinários

Nossas Luas

Nossas Luas
E são treze...

Seduções & Devaneios

Seduções & Devaneios
Eu o escreveria mil vezes!

Guadalupe, a Santíssima Mestiça

Guadalupe, a Santíssima Mestiça
Como amei descrevê-la!

Amor e Cozinha

Amor e Cozinha
Foi uma delícia escrevê-lo!