Se havia uma coisa que Vitalina amava e temia era a palavra. A sua relação com as palavras era de tal modo sagrada que se poderia mesmo afirmar que ela as tinha como religião. Sussurrava versos que benziam e amaldiçoavam, e escutava as "cantorias" dos poetas como estrofes de poderosos curandeiros. Com Vitalina aprendi a amar e temer as palavras; aprendi a ver as carnes das sílabas; sentir o cheiro das letras; tocar as curvas dos acentos, vírgulas, pontos e travessões; escutar as batidas cardíacas das pausas e parágrafos, e mastigar os temperos e especiarias das frases. Mas Vitalina morreu sem me ensinar tudo. A decifração ficou por minha conta e a gramática mágica das letras, entregue aos Deuses. E foi assim que "A Cidade e os Livros", do Antonio Cicero, bateu hoje à minha porta. Eu, cá perdida numa trama de letras que nunca termina, arranquei o livro das mãos do carteiro como um pirata defendendo o seu ouro. O pobre homem não entendeu e me olhou desconfiado... Abri o envelope e as primeiras palavras surgiram num verso de Paul Klee ; um arranha céu estante, uma cidade delineada em lombadas de livros. Bem acima, uma rua de palavras : Cidade e Livros. Esperei o sinal abrir e entrei na primeira esquina: um beco de Rose Auslander. Enfrentei fantasmas e venci bandoleiros. Uma rua comprida e larga me esperava logo além do Espaço. E surgiram ruas, vielas e livros. Me pareceu estar no País das Maravilhas, mas Cicero já havia avisado que nele não se pode entrar. Calculei que estava e não estava, e me perdi entre a rua do Ouvidor e a rua México. Foi aí que surgiram os cheiros e os paladares : parei para um camarão empanado na Colombo e uma cerveja no bar Luis. As palavras do livro tinham me levado longe, num lugar que de tão distante ninguém se perde. Vitalina não tinha me ensinado essa lição : as palavras podem nos levar aos confins, só pra gente não se perder... Se Vitalina ouvisse os poemas do Antonio Cicero, certamente os guardaria como os mais preciosos encantamentos.
obs: o livro foi publicado pela Editora Record.
2 comentários:
Marcia querida,
adorei o blog e fiquei emocionado com este post Muito obrigado. Vou pôr um link no meu para o seu (engraçado esse internetês!).
Um beijo grande,
Antonio Cicero
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