Quando Luiza, por gulodice ou conhecimento, me falava do apocalipse, falava em fome, em comida rareando na terra e bocas famintas implorando um só grão de feijão. O apocalipse de Luiza não era assombrado pelas cornetas dos quatro cavaleiros, pela névoa sombria da morte, nem pelas dívidas e juros pelos pecados. Para ela, o apocalipse roncava dentro das barrigas que nem lombrigas. Quando Luiza a ele se referia, girava nas mãos um terço de caroços de azeitonas, vindo lá das bandas de Jerusalém. Caroços-contas, abençoados pelas raízes das oliveiras que banhavam saladas e fritavam bolinhos de chuva nas tardes chuvosas.No girar (ou frigir) das contas Luiza benzia o alimento enquanto guardava sementes dentro de uma lata. Depois, enquanto o almoço descansava naspanelas, sorrateiramente desaparecia no corredor da sala e escondia a lata sabe-se lá onde. Ao sentar na mesa abençoava o alimento como se aquela fosse a última vez que comia. Mastigava cada bocado como se mastigasse o Éden e a carne de Deus. Ao terminar, levantava-se da cadeira e se achegava à janela com um punhado de arroz para os passarinhos. "Comida se divide com homens e bichos", dizia com ares de filosofia. No céu, Pascal agradecia. Quando morreu não teve tempo de revelar o paradeiro da lata e a família, talvez ocupada pelo funeral ou esquecida das "maluquices" de Luiza, dele não se preocupou em saber. O tempo correu e todos nós envelhecemos. O Apocalipse Lombriguento foi esquecido e o terço de azeitonas mofou dentro de um velho baú. Só fui me lembrar da latinha quando fiquei sabendo dos tais transgênicos. Corri à velha casa e escavei cada recanto. Foram precisos muitos dias para que a descobrisse num fundo falso de uma gaveta da cômoda. Puxei a tampa com cuidado e lá estavam sementes de alface, abóbora, feijão, coentro, beterraba, cenoura, quiabo, giló, maxixe, berinjela, agrião, couve, repolho, laranja, manga, morango, tangerina, açafrão, erva-doce, melissa, melão, melancia e até papoula. Tampei a lata com muito cuidado (Luiza dizia que o apocalipse é bisbilhoteiro) e a levei para casa. Continuei o trabalho de Luiza e hoje a latase multiplicou. E se você, ao ler esta história acreditar nas palavras de uma velhinha de 110 anos que nunca contou mentiras, pegue uma latinha e comece aguardar sementes. Quem sabe a gente com isso vença o Lombriguento e distribua a fartura à Natureza quando os tempos se tornarem famintos e a esperança,transgênica.
sábado, 22 de março de 2008
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