Quando numa sexta-feira, 9 de março, um dragão rasgou o início da noite, bufando poeira de estrelas pelas narinas, reconheci a amazona que o cavalgava: era a Mortíssima de quem Frida, em sua dolorosa saga de calos, tanto falara e representara na ponta dos pincéis.
Eram cinco horas da tarde! Lorca não se enganara. Exatamente quando os ponteiros marcavam cinco em ponto da tarde a velha senhora se apresentava, livre de qualquer atraso, de qualquer desculpa esfarrapada. Exata como uma equação matemática, pousou o dragão sobre o leito de hospital que Álvaro, meu pai, se encontrava. Não se confundiu com nomes nem solicitou à nenhuma enfermeira, informações sobre o leito.
Embora insastifeito com o local do encontro e, se lhe fosse dada escolha, preferisse o centro da praça, acatou a chegada, lembrando-se de uma canção que Gilberto Gil compôs num momento de inspiração metafísica onde afirmou a realeza solitária da Mortíssima. "Afinal, se a morte é rainha que reina sozinha, quem sou eu para reclamar do local do encontro", perguntou-se, cantarolando a canção enquanto a digníssima dama se aproximava.
Demonstrando sinais de agenda sobrecarregada por horários que desafiariam a mais requintada teoria quântico-filosófica, indiferente a dor, ao espanto e às súplicas dos doentes que por ela esperavam como se esperassem uma aplicação de morfina, a Mortíssima rainha se aproximou de Álvaro, pronta para lhe dar o mortífero beijo.
E foi nesse exato instante que os seus lábios descarnados se aguavam em gotas secas do Rio da Secura que deu-se o inesperado: dragões alados, cavalgados por poetas, heróis, filósofos, músicos, pintores, atores, juristas, anjos, santos, artistas, escritores, cantores e "gente poéticamente comum", como meu pai bem dizia, rasgaram o teto branco da enfermaria. E lá estavam, físicamente contrariando a corte solitária da rainha Mortíssima, a mãe, o filho, o pai, o irmão, as irmãs, as tias, os tios, os avós, as avós, os velhos amigos de infância de Álvaro, acompanhados por Roberto Lyra, Carlos de Araújo Lima e Sobral Pinto, seus companheiros juristas que o ensinaram a amar e praticar a justiça mesmo quando esta exigia dolorosos sacrifícios; Dolores Duran, Lupiscínio Rodrigues e Antônio Maria, companheiros de antigas noitadas pelos bares de copacabana e vielas da Lapa; Marx, Lênin, Che, Bolívar, Chico Mendes, Garcia Lorca, Pablo Neruda, Torquato Neto, Castro Alves, Fernando Pessoa, Gorki, Picasso, Frida, Rivera, Portinari, Mario Lago, Shakespeare, Maysa, Silvinha Teles, Agostinho dos Santos, e uma horda inumerável de heróis que com ele estiveram na praça que é do povo como o céu é do condor, provando - em circunstância material - que a morte só é solitária quando reina sobre os injustos e os canalhas.
Numa fração de tempo incontável e inregistrável, num último lampejo de uma lucidez que conseguira esconder do ladrão Alzheimer, Álvaro sorriu para a Mortíssima e lhe confidenciou no ouvido: "Me leva depressa porque tenho que contestar a tese do Gil."
Se entrou ou não com uma petição - amigável, que fique bem claro - isso é coisa que ficou por conta do segredo de justiça do STC (Supremo Tribunal Celeste).
A Mortíssima? Dizem os registros hagiográficos que naquele dia, contrariando a agenda superlotada, seguiu o cortejo de dragões alados e foi vista, acompanhada por ruidoso séquito, num boteco da Lapa, cantarolando as canções que Lupiscínio e Dolores entoavam, extasiada - talvez pela cerveja ou pelas palavras - com os argumentos e contra-argumentos travados entre os juristas, filósofos e poetas.
O resultado da ação impetrada no STC ainda permanece incógnito para nós, os vivos, mas rumores surgidos numa sessão espírita acontecida num subúrbio do Rio, dizem que o tribunal pegou fogo quando Pinochet, o grande canalha, trazido das víceras profundas do Diabo, declarou no banco das testemunhas, ter sido levado pela Mortíssima "sozinho como um cão danado".
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