domingo, 2 de março de 2008

A Cidade e os Livros


Se havia uma coisa que Vitalina amava e temia era a palavra. A sua relação com as palavras era de tal modo sagrada que se poderia mesmo afirmar que ela as tinha como religião. Sussurrava versos que benziam e amaldiçoavam, e escutava as "cantorias" dos poetas como estrofes de poderosos curandeiros. Com Vitalina aprendi a amar e temer as palavras; aprendi a ver as carnes das sílabas; sentir o cheiro das letras; tocar as curvas dos acentos, vírgulas, pontos e travessões; escutar as batidas cardíacas das pausas e parágrafos, e mastigar os temperos e especiarias das frases. Mas Vitalina morreu sem me ensinar tudo. A decifração ficou por minha conta e a gramática mágica das letras, entregue aos Deuses. E foi assim que "A Cidade e os Livros", do Antonio Cicero, bateu hoje à minha porta. Eu, cá perdida numa trama de letras que nunca termina, arranquei o livro das mãos do carteiro como um pirata defendendo o seu ouro. O pobre homem não entendeu e me olhou desconfiado... Abri o envelope e as primeiras palavras surgiram num verso de Paul Klee ; um arranha céu estante, uma cidade delineada em lombadas de livros. Bem acima, uma rua de palavras : Cidade e Livros. Esperei o sinal abrir e entrei na primeira esquina: um beco de Rose Auslander. Enfrentei fantasmas e venci bandoleiros. Uma rua comprida e larga me esperava logo além do Espaço. E surgiram ruas, vielas e livros. Me pareceu estar no País das Maravilhas, mas Cicero já havia avisado que nele não se pode entrar. Calculei que estava e não estava, e me perdi entre a rua do Ouvidor e a rua México. Foi aí que surgiram os cheiros e os paladares : parei para um camarão empanado na Colombo e uma cerveja no bar Luis. As palavras do livro tinham me levado longe, num lugar que de tão distante ninguém se perde. Vitalina não tinha me ensinado essa lição : as palavras podem nos levar aos confins, só pra gente não se perder... Se Vitalina ouvisse os poemas do Antonio Cicero, certamente os guardaria como os mais preciosos encantamentos.
obs: o livro foi publicado pela Editora Record.





2 comentários:

Antonio Cicero disse...

Marcia querida,

adorei o blog e fiquei emocionado com este post Muito obrigado. Vou pôr um link no meu para o seu (engraçado esse internetês!).

Um beijo grande,
Antonio Cicero

Antonio Cicero disse...
Este comentário foi removido pelo autor.

Chet

Chet

Home Sweet Home

Home Sweet Home
Que buraco é esse que me faz comer a geladeira?

Livros & Livrarias

Livros & Livrarias
Livrarias são janelas. Livros olham o mundo.Livrarias libertam. Livros revolucionam.

Senhoras do Santíssimo Feminino

Senhoras do Santíssimo Feminino
O poder sagrado Delas.

A Pergunta de Lacan

A Pergunta de Lacan
O mistério do gozo das mulheres

Afrodite & Panelas

Afrodite & Panelas
E no princípio era a GULA...

A Casa

A Casa
O mundo olha pelas nossas janelas...

Um Lance de Dados

Um Lance de Dados
Jamais abolirá o acaso

O Caldeirão

O Caldeirão
Ele não está no final do arco-íris

Armário e Gavetas

Armário e Gavetas
O que será que eles revelam?

Minha Cozinha

Minha Cozinha
Onde tudo começou.

Meus Segredos

Meus Segredos
Laços e refogados culinários

Nossas Luas

Nossas Luas
E são treze...

Seduções & Devaneios

Seduções & Devaneios
Eu o escreveria mil vezes!

Guadalupe, a Santíssima Mestiça

Guadalupe, a Santíssima Mestiça
Como amei descrevê-la!

Amor e Cozinha

Amor e Cozinha
Foi uma delícia escrevê-lo!