sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Cuba Libre & Saias


Num atlas talvez desenhado por um cartógrafo bêbado, Cuba encontrava-se geograficamente situada entre o quarto, o corredor, o salão e o quinto andar de um prédio art déco da rua Paissandu. Longitude 186, latitude 5. Coordenadas invariáveis de uma república cujos únicos furacões e abalos sísmicos se resumiam ao farfalhar das saias a ventar rebolados e às imperceptíveis fendas que os saltos agulha, 8.5, abriam no assoalho impecavelmente encerado.
Por vezes, muitas vezes, maremotos agitavam cubos de gelo em mares de uísque e ojos verdes se faziam heridos de sombras. Nessas horas as batidas dos corações se confundiam com as dos bongôs e as narinas ventavam quentes arrullos de palma. Nessas horas, invariavelmente Conceição, a copeira que se achava musa de Cauby, me descobria escondida no corredor de uma alfândega que barrava meninas de dez anos de idade. Cuba era então para mim interdita e até os quatorze anos me foi negado visto de entrada em seu território.
Talvez pelas conversas que meu pai trocava com os amigos a respeito de uma mestra maestra que executava, no topo de uma serra, sonatas e rapsódias com uma porção de alunos tão pobres que tocavam violinos com arcos de facões enferrujados e por falta de instrumentos de percussão disparavam balas por toscos rifles, ou pelos suspiros que as mulheres trocavam no banheiro - entre novas camadas de batom, pó de arroz e lufadas de channel nº 5 - ao se referirem a um magnético guerrilheiro, meu interesse pelo país foi crescendo tanto que um dia ludibriei os fiscais alfandegários e entrei de clandestina na ilha, escondida atrás de uma poltrona.
Cuba, acolhedora das boas revoluções, acolheu-me. Revelou-se em pleno farfalhar acetinado de saias, no aroma de lavanda e pinho a exalar das barbas, nas risadas intervaladas pelo escorrer do álcool garganta abaixo, na fumaça dos charutos encontrando-se no ar com a dos cigarros equilibrados em longas piteiras. Fumar era naquela época tão livre como Cuba.
Minha permanência no país durou até o momento em que fui rastreada pela burocracia (infelizmente, até no estado revolucionário ela existe) e deportada para o meu quarto, tendo que atravessar o país de pijamas. A humilhação - como acontece com os verdadeiros revolucionários - não abalou minha fé na revolução e por muitos anos freqüentei Cuba na clandestinidade. Se fui descoberta? É claro que sim. Porém, retornei muitas vezes. Não seriam as deportações que me roubariam o gozo de ouvir Ibrahim Ferrer e o tilintar do gelo dentro de copos de Cuba Libre.



obs: se você gosta dos meus textos, que tal ler meus livros? De prima, indico Guadalupe e as Bruxas, editado pela Editora Planeta e Senhoras do Santíssimo Feminino, editado pela Rosa dos Tempos, um selo da Editora Record.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Donas

Domina são donas sem domínios
dominam o nada
dispensam o tudo.
Domina são donas dos desígnios,
conduzem o destino em entrudo.

Domina são dominós femininos
que riscam pontos na escuridão.
Ferozes e meigas como felinos
Senhoras da ruptura e da perversão.

Domina são barcos sem marinas,
missas negras sem Papa e sem latim.
Domínios de tules e bailarinas
Tatuam os lábios com rubro carmim.

Domina são donas sem
que dão à luz e engolem a vida
nas tripas sangrentas do nó.





Virgínia rezava para Fátima. No avarandado do fundo da casa conversava com a moça azul que chegava ao final da tarde. Conversa azulada, encantada, refogada. A moça ajudava o preparo da janta enquanto Virgínia orava e catava feijões. Orações culinárias, ensopadas, encorpadas. De tão íntimas, eram uma. Virgínia era Fátima e Fátima era Virgínia. Uma era virgem. A outra, nem tanto.

domingo, 17 de agosto de 2008

Mother Spell

Que um dia você não se perca
entre a cozinha e o corredor.
Que vire Houdini e abra
correntes e baús fechados.
Que não assuma dívidas
por maternas fibras desdobradas.
Que não se obrigue a nada
que o coração não mandar.
Que não tenha medo do mundo
nem das cidades nem dos subúrbios.
Que não tema o pânico de si
e como spiderman agarre sua alma.
Que se perca em amores impossíveis
mas possibilite-se.
Que desperdice o tempo
pois a vida não usa relógio.
Que cresça,
diminua,
encolha e alargue
quando der na veneta.
Que desoriente como Alice,
que apresse como o coelho,
que escape como Snark,
que confunda como Peter Pan.
Que fuja de Otelo
mas persiga noites quentes de verão.
Que seja o que já é
o que será
e o que já foi sendo.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Janelas e Colchas

Quando a bainha da saia da noite arrastava pelas calçadas, acendendo os postes da rua e tocando os passarinhos para casa, Vitalina me chamava para tecermos a nossa colcha de sonhos na janela. Arrastávamos então duas cadeiras e no chão deixávamos os cestos, onde guardávamos o nosso material de trabalho: dois pares de raios de lua como agulhas, e risos, dores, desejos, tristezas, lembranças, raivas, fracassos, decepções, medos, amores, desamores, ilusões, realidades, desesperos, descrenças, entusiasmos, alegria e fé, enrolados em diversos novelos.
Sentávamos bem próximas do parapeito da janela e enquanto a saia da noite farfalhava faróis a buzinar aflitos para chegar em casa após um dia inteiro de trabalho, inalávamos o perfume da noite e começávamos a tecer.
A princípio, por ocasião das primeiras laçadas, atrapalhei-me com o manejo das agulhas e ainda não tinha muitos novelos ao meu dispor. Os raios de lua, embora eternos, de tão flexíveis eram difíceis de manejar. Diferentemente de Vitalina, que tinha uma variedade de novelos, os meus eram uns poucos metros de fio: o dos amores, um pouco menos, e o da fé, um pouco mais roliço, apresentando pequenos nós que embaralhavam o tricotar.
Vitalina dizia que a prática e mais novelos viriam com o tempo. E que os nós no fio da fé eram para ser assim mesmo, "porque senão não é fé".
Também custei a me acostumar com a falta de visibilidade do trabalho. A colcha parecia não passar daquela primeira tripa de laçadas que inicia o crochê. Vitalina ria da minha impaciência, dizendo que no início as colchas da janela são difíceis de se ver. E torcendo na agulha um fio, arrematava: "a veneziana do tempo é que dá forma às colchas".
Texto extraído de meu livro A Casa da Bruxa, publicado pela Editora Planeta.

sábado, 9 de agosto de 2008

Dive David


Dive
David
Tongue língua
Lynch.
Silent noise.
Dive
Deep
David.
Lance insight
Lynch.
Is
land ilha
Dive
Deep
David.
Beyond
mais ali
Lynch.

Morrer Morrindo


Quando o sol esfriava a cabeça do cristo redentor e o fogo do desejo piscava no céu, disfarçado em primeira estrela, a língua da cidade balbuciava orações. Ave marias. Pai nossos. Salve rainhas. Credos. Água no copo. Radiofonia romana em césares subindo ladeiras.
Depois, quando a noite caía, acendia-se uma vela. De sete dias. Para um anjo em guarda. A intensidade da chama media a espada. Longa, se intensa; curta, se pálida. Em casos extremos as asas e a espada eram reforçadas pelo éter das almas benditas. "Alma dos inocentes, daqueles que morreram rindo com a boca e os olhos", dizia Benedita, a babá de Mauro, meu irmão caçula.
Morrer sorrindo... Como alguém pode morrer sorrindo? Morrindo? Morrer era então morrir. "Mas só para poucos", Benedita revelava, iluminada pelo tremeluzir frio da vela.
Quando morriu, num casebre perdido na clareira de uma favela, congelou o olhar de esperança e os deixou de herança para os filhos. Um tico de esperança muita. O mesmo tico que Deus deve ter deixado quando morriu para criar o Todo Tudo Possível.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Mais Além de Paris


La vie en rose
nem sempre piafa.
Paris blecauteia
em passos torpes.
Mais pourquoi sont-ils
si médiocres?
Rio,
Paris,
Mar de Espanha...
Que importa o lugar
quando almas são pequenas?
Lugares são lugares.
Ruas,
pedras,
rios,
vielas,
janelas,
portas,
putas,
marginais,
escroques.
Cidades são iguais
nos mapas.
Mas os homens,
os verdadeiros,
não se adequam a geografias.

sábado, 2 de agosto de 2008

David Lynch & Eu

Embora o anonimato do tradutor acabe criando uma espécie de timidez patológica, desta vez não me contive: traduzi o livro do David Lynch!!!
O livro, Em Águas Profundas, é de extrema delicadeza, um primor de pensamento, doce que nem doce de leite. Me faz feliz pensar que de alguma maneira, por mais escondidinha que seja, participei desta obra tão delicada. Gisela Zingoni, minha doce amiga e baita editora da Gryphus, deu-me o mais precioso presente quando me deu o livro para traduzir.
Agora espero ansiosamente, tietemente, que David autografe um exemplar só para mim. Ufa! estou emocionada. O livro é uma obra definitiva, irreversível, de delicadeza e humanismo.

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Mixing André Mux



Drumond bem que apontou
certos anjos...
Tortos,
avessos,
caóticos.
Não segui o sinal
e ele chegou:
do lado do avesso,
no centro da mesa,
num ali mais além
do acolá.
Misturou melancia
com gelo e vodka.
Caímos bêbados
na cozinha porão de Ana.
Desde ali,
uns aquis e acolás
misturados.
Fixados em plumas
de vedetes.

Este é pra você, André.

Chet

Chet

Home Sweet Home

Home Sweet Home
Que buraco é esse que me faz comer a geladeira?

Livros & Livrarias

Livros & Livrarias
Livrarias são janelas. Livros olham o mundo.Livrarias libertam. Livros revolucionam.

Senhoras do Santíssimo Feminino

Senhoras do Santíssimo Feminino
O poder sagrado Delas.

A Pergunta de Lacan

A Pergunta de Lacan
O mistério do gozo das mulheres

Afrodite & Panelas

Afrodite & Panelas
E no princípio era a GULA...

A Casa

A Casa
O mundo olha pelas nossas janelas...

Um Lance de Dados

Um Lance de Dados
Jamais abolirá o acaso

O Caldeirão

O Caldeirão
Ele não está no final do arco-íris

Armário e Gavetas

Armário e Gavetas
O que será que eles revelam?

Minha Cozinha

Minha Cozinha
Onde tudo começou.

Meus Segredos

Meus Segredos
Laços e refogados culinários

Nossas Luas

Nossas Luas
E são treze...

Seduções & Devaneios

Seduções & Devaneios
Eu o escreveria mil vezes!

Guadalupe, a Santíssima Mestiça

Guadalupe, a Santíssima Mestiça
Como amei descrevê-la!

Amor e Cozinha

Amor e Cozinha
Foi uma delícia escrevê-lo!