quinta-feira, 29 de maio de 2008

Uma Rosa de Plástico


Vitalina cultivava rosas no jardim. Brancas, vermelhas, amarelas e, por incrível que pareça, rendadas. Gostava de acordar de manhãzinha e aspirar o "cheiro do amor", como ela mesma costumava definir o misterioso aroma das rosas. Não era egoísta e compartilhava com os vizinhos aquele prazer rosado. Cedia rosas para os buquês das noivas, para os caixões dos defuntos, para os cabelos das moças, e para as bruxas amigas que com elas fabricavam estranhas poções. Vivia feliz entre um canteiro e outro, e achava que um dia o mundo todo cheiraria a rosa...
E assim, nesse cotidiano rosáceo, Vitalina testemunhou eleições e golpes. Viu Juscelino passar em frente à sua casa e lhe deu uma rosa. Recebeu Goulart com um botão bem vermelho. Tonteou com tanto perfume que acabou acreditando em Jânio, e lhe deu também uma rosa. Rosa esta que lhe causou uma rusga na vizinhança: Sobral Pinto, o seu amado vizinho, enfureceu-se com o cartaz de uma vassoura que Vitalina cismou em pendurar na janela. O que Sobral nem de longe desconfiava é que Vitalina era uma bruxa ativista que pensava que a tal vassoura era um simples logotipo do PBA, Partido das Bruxas Anárquicas.
Vitalina recusou-se a ceder suas rosas ao golpe. Escondeu-as atrás de uma cerca e à noite, quando a cidade toda dormia, regava-as e podava os espinhos. As rosas cresceram clandestinas. Aprenderam a despitar o aroma e só se abriam quando não havia ninguém por perto. O comunismo rosado era mal visto naqueles dias... Mas Vitalina, militante convicta do PBA, sempre arrumava um jeito de dividir suas rosas com os vizinhos. E foi assim que uma noiva casou-se com um buquê de rosas disfarçadas de jasmins e uma alma cruzou o Leto segurando uma rosa travestida em lírio...
Vitalina não viveu para ver a libertação dos seus canteiros. Morreu durante o reinado golpista. Não levou suas rosas para dar de presente a Hades. Deixou-as comigo junto com um misterioso aviso: " Não deixe que a Rosa de Plástico entre no canteiro."
Depois da sua partida, corri a fazer um cartaz: PROIBIDO ROSA DE PLÁSTICO. Finquei-o bem na entrada dos canteiros. As rosas, avessas a toda e qualquer falsificação, agradeceram.
Até que chegou o dia que Vitalina tanto temia: uma rosa de plástico surgiu nas cercanias. Chegou exalando um perfume barato, uma santidade medíocre, uma ternura suspeita. Escondeu os espinhos, pensando que assim seria bem recebida. Que tola. A tonta não sabia que as rosas nunca escondem os seus espinhos... Mas a Rosa de Plástico pouco sabia das rosas e de tanta ignorância se nomeou Rosinha. Que tola. A tonta não sabia que as verdadeiras rosas não aceitam os diminutivos...
E assim, as rosas de Vitalina expulsaram aquela tosca falsificação.
Mas como a Rosa de Plástico é por demais insistente e a todo custo (e muitas custas) tenta invadir os jardins, repito mais uma vez o aviso que Vitalina deu antes de ir se encontrar com Hades: cuidado com a Rosa de Plástico e o Garotinho que a acompanha.



Escrevi este texto há muitos anos e hoje comprovei a sabedoria de Vitalina quando ao ligar o rádio ouvi a notícia do indiciamento do ex governador Garotinho num processo de lavagem de dinheiro e formação de quadrilha.

terça-feira, 27 de maio de 2008

Os Olhos de Ecio Mello

Farinha de trigo
água, sal e fermento.
Alguns temperos...
inconfessáveis.
E lá estava ele,
assado,

na temperatura certa.
Olhos que olhavam,
mastigavam a vida
em nacos.
Sorriu.
Elogiou a textura
e deu-me um jantar de presente.
Que presente!
Na sobremesa serviu olhos...
melados.
"Olhos de criança",
ele disse.
Papo de anjo, pensei.

domingo, 25 de maio de 2008

Morrida de Saudades




Hoje à noite,


Ina latiu.


Abanou o rabo.


Pediu um biscoito.


Depois foi caçar leões,


lá na Rodésia.


Ao partir,


me lambeu.


Acordei morrida.


Atrás da lux dos olhos de André Mux,


à cata da rainha de Adriana Reis,


em busca das maçãs do rosto de Ana Durães.


Acordei morrida de saudades,


dos meus amigos.






sábado, 17 de maio de 2008

Ashes

No meu funeral, quero me vestir de cetim.
quero um batom vermelho como sangue
e perfume de jasmim.
No meu funeral, quero estar gostosa
como uma estrela saída da tela.
Quero poetas, pintores, cantores, e atores
mas não quero nenhuma vela.
No meu funeral quero piadas e risadas
quero beijo na boca, vinho, e perversão.
E... por favor, não fechem o caixão.


Virgínia era trágica como os precipícios. Escondia Shakespeare no olhar. E embora devota, era irmã das pragas. Amaldiçoava os injustos, os cruéis e os malvados com a justiça e a bondade das madonas.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Afazeres

1. Morar em Friburgo só pra sentir mais saudade do Rio.
2. Fazer pão nas tardes de inverno, ao som de Cat Stevens
(ou de Joan Baez ou dos cânticos da novena da vizinha beata).
3. Semear sementes na horta e gozar com a colheita.
4. Morrer de saudades do Piauí
e me banhar nas águas do Poty
(mesmo sendo elas meras lembranças)
5. Ouvir a voz dos poetas e refogar arroz com coentro.
6. Ter esperança, muita esperança e sempre esperança.
7. Fazer geléia de morango silvestre (este ano a colheita foi boa).
8. Fazer o doce de leite que o Moacy Cirne me ensinou
(dá uma trabalheira danada!).
9. Ouvir os fados de Amália e o fado de Callas .
10. Ser esquizofrênica até a última célula
e achar que ainda vale a pena acreditar no Belo.
11. Ter esperanças de que as pessoas comprarão Apenas Um Herói, livro de meu filho, Daniel Frazão, recém lançado pela Editora Rocco.

terça-feira, 6 de maio de 2008

Babalu, a Violência e Olinda

Quando as pernas ainda eram fortes e nenhuma bala lhe cruzava o caminho, Olinda subia o morro de São Carlos a contar cada degrau da ladeira. Sem pressa, sem medo de polícia nem bandido. Subia carregada de tecidos. Lãs, popelines, shantungs, brocados e mais os aviamentos. Era costureira. A melhor costureira que as madames do asfalto já tinham conhecido.
Costurava panos e pregava botões na vida. Remendava meias e destinos. Nas horas vagas, quando os pés desgrudavam do pedal da máquina de costura, Olinda escutava as cantoras do rádio. Gostava de ouvir Ângela, a menina que conhecera no coro da igreja, a louvar Babalu, um Deus que não conhecia. Nessas horas, o mundo era para ela mais uma conquista do Zinco. Conquista almada, alinhavada com linhas de notas musicais...
Quando as cantoras se despediam e os reclames anunciavam as maravilhas do talco Cashemere Bouquet, Olinda desligava o velho rádio e ia para o portão, munida de cadeira e caixa de costura, conversar com as vizinhas. A brisa morna do fim de tarde embalava as conversas. Naquela época, recheadas de casamentos, primeiras comunhões e batizados.
Era nessa hora que Olinda sentia orgulho de estar ali, bem no alto do São Carlos, bem acima das feiúras que ela via todo dia no asfalto. E era justamente por causa dessa feiúra que ela trazia os tecidos para costurar em casa. Ali os alfinetes não espetavam o corpo das freguesas, as pences se postavam geométricas um pouco abaixo dos seios e um pouco acima da cintura. Pura questão de simetria, dizia a patroa, dona da loja chique em que Olinda trabalhava.
Se era questão de simetria ou magia (dizem que Olinda herdara os dons das linhas e tesouras de uma velha feiticeira), isso ninguém sabia. Olinda guardava bem os seus segredos. Guardados a dezenove chaves, os segredos operavam verdadeiros milagres.
Quando o carnaval se achegava matreiro, manso e regado à cerveja, Olinda lá estava ao pé da máquina, bordando as fantasias da Unidos de São Carlos (que para ela nunca deixara de ser a Deixa Falar). Bordava com tanta maestria que a escola brilhava na avenida, aclamada por uma arquibancada que nem de longe desconfiava que as luzes das lantejoulas e as plumas das passistas eram obra da mais fina costura. Olinda, com os olhos pregados na televisão, relembrava cada remendo na dor e privação de cada lantejoula. Relembrava os sonhos costurados nas franjas da porta-bandeira, a esperança bordada no chapéu do mestre-sala, e sorria com seus botões, ciente do seu trabalho de costureira.
Durante anos foi a responsável pelas fantasias da escola. Formou aprendizes e chegou até a pensar em um dia fundar uma escola de corte e costura para as escolas de samba. Mas o trabalho na loja não deixou que o sonho se concretizasse. E assim o sonho de perpetuar os remendos do samba foi ficando para trás, como um alguém a acenar na despedida de um navio.
O tempo passou e Olinda continuou no morro. A loja chique fechou e as freguesas do asfalto já não queriam mais se parecer com a Conceição que Cauby cantava. A Deixa Falar caiu para o segundo grupo, os vestidos de casamento foram comidos pelos cupins e as cantoras do rádio emudeceram. A cadeira perdeu as pernas e as vizinhas ficaram mudas. Mas Olinda continuou no portão, só que desta vez contando os mortos e se desviando das balas...
Hoje, quando a tarde se despede do dia e uma lua enorme surge no céu, Olinda lá está no alto do Zinco, sentada numa cadeira sem pernas a acenar para o asfalto, pedindo a Babalu que olhe pelos panos rotos que as suas mãos já não conseguem remendar.

Chet

Chet

Home Sweet Home

Home Sweet Home
Que buraco é esse que me faz comer a geladeira?

Livros & Livrarias

Livros & Livrarias
Livrarias são janelas. Livros olham o mundo.Livrarias libertam. Livros revolucionam.

Senhoras do Santíssimo Feminino

Senhoras do Santíssimo Feminino
O poder sagrado Delas.

A Pergunta de Lacan

A Pergunta de Lacan
O mistério do gozo das mulheres

Afrodite & Panelas

Afrodite & Panelas
E no princípio era a GULA...

A Casa

A Casa
O mundo olha pelas nossas janelas...

Um Lance de Dados

Um Lance de Dados
Jamais abolirá o acaso

O Caldeirão

O Caldeirão
Ele não está no final do arco-íris

Armário e Gavetas

Armário e Gavetas
O que será que eles revelam?

Minha Cozinha

Minha Cozinha
Onde tudo começou.

Meus Segredos

Meus Segredos
Laços e refogados culinários

Nossas Luas

Nossas Luas
E são treze...

Seduções & Devaneios

Seduções & Devaneios
Eu o escreveria mil vezes!

Guadalupe, a Santíssima Mestiça

Guadalupe, a Santíssima Mestiça
Como amei descrevê-la!

Amor e Cozinha

Amor e Cozinha
Foi uma delícia escrevê-lo!