Quando as pernas ainda eram fortes e nenhuma bala lhe cruzava o caminho, Olinda subia o morro de São Carlos a contar cada degrau da ladeira. Sem pressa, sem medo de polícia nem bandido. Subia carregada de tecidos. Lãs, popelines, shantungs, brocados e mais os aviamentos. Era costureira. A melhor costureira que as madames do asfalto já tinham conhecido.
Costurava panos e pregava botões na vida. Remendava meias e destinos. Nas horas vagas, quando os pés desgrudavam do pedal da máquina de costura, Olinda escutava as cantoras do rádio. Gostava de ouvir Ângela, a menina que conhecera no coro da igreja, a louvar Babalu, um Deus que não conhecia. Nessas horas, o mundo era para ela mais uma conquista do Zinco. Conquista almada, alinhavada com linhas de notas musicais...
Quando as cantoras se despediam e os reclames anunciavam as maravilhas do talco Cashemere Bouquet, Olinda desligava o velho rádio e ia para o portão, munida de cadeira e caixa de costura, conversar com as vizinhas. A brisa morna do fim de tarde embalava as conversas. Naquela época, recheadas de casamentos, primeiras comunhões e batizados.
Era nessa hora que Olinda sentia orgulho de estar ali, bem no alto do São Carlos, bem acima das feiúras que ela via todo dia no asfalto. E era justamente por causa dessa feiúra que ela trazia os tecidos para costurar em casa. Ali os alfinetes não espetavam o corpo das freguesas, as pences se postavam geométricas um pouco abaixo dos seios e um pouco acima da cintura. Pura questão de simetria, dizia a patroa, dona da loja chique em que Olinda trabalhava.
Se era questão de simetria ou magia (dizem que Olinda herdara os dons das linhas e tesouras de uma velha feiticeira), isso ninguém sabia. Olinda guardava bem os seus segredos. Guardados a dezenove chaves, os segredos operavam verdadeiros milagres.
Quando o carnaval se achegava matreiro, manso e regado à cerveja, Olinda lá estava ao pé da máquina, bordando as fantasias da Unidos de São Carlos (que para ela nunca deixara de ser a Deixa Falar). Bordava com tanta maestria que a escola brilhava na avenida, aclamada por uma arquibancada que nem de longe desconfiava que as luzes das lantejoulas e as plumas das passistas eram obra da mais fina costura. Olinda, com os olhos pregados na televisão, relembrava cada remendo na dor e privação de cada lantejoula. Relembrava os sonhos costurados nas franjas da porta-bandeira, a esperança bordada no chapéu do mestre-sala, e sorria com seus botões, ciente do seu trabalho de costureira.
Durante anos foi a responsável pelas fantasias da escola. Formou aprendizes e chegou até a pensar em um dia fundar uma escola de corte e costura para as escolas de samba. Mas o trabalho na loja não deixou que o sonho se concretizasse. E assim o sonho de perpetuar os remendos do samba foi ficando para trás, como um alguém a acenar na despedida de um navio.
O tempo passou e Olinda continuou no morro. A loja chique fechou e as freguesas do asfalto já não queriam mais se parecer com a Conceição que Cauby cantava. A Deixa Falar caiu para o segundo grupo, os vestidos de casamento foram comidos pelos cupins e as cantoras do rádio emudeceram. A cadeira perdeu as pernas e as vizinhas ficaram mudas. Mas Olinda continuou no portão, só que desta vez contando os mortos e se desviando das balas...
Hoje, quando a tarde se despede do dia e uma lua enorme surge no céu, Olinda lá está no alto do Zinco, sentada numa cadeira sem pernas a acenar para o asfalto, pedindo a Babalu que olhe pelos panos rotos que as suas mãos já não conseguem remendar.
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