quinta-feira, 18 de junho de 2009

Livros, Língua & Amigo

Não sei se por velhice Divina ou se por embaçamento das janelas do céu - pode acreditar, a poluição também chega lá - Deus se cansou de olhar os homens e se recolheu aos livros. Arrastou uma velha poltrona para perto da lareira, esqueceu dos conselhos médicos e desaposentou um maço de cigarros, colocou na vitrola um disco de Chet Baker e tirou da estante o primeiro volume da trilogia de Henry Miller. Sexus. "Latim", pensou o Diviníssimo, carregando o grosso volume para a poltrona.
E ali, entre a primeira baforada e o sopro reticente de Chet, Ele folheou a primeira página. O livro não era em latim. "Como? Que raio de língua é essa?" Deus se perguntou, já desconfiado de que o tempo que havia criado lhe passara a perna. O tempo correra e o Altíssimo ficara para trás, acreditando que a onipresença e a oniciência estavam para além das transformações da linguagem. Se Ele tivesse dado ouvidos a Crocce, ou a São Tomas de Aquino ou se tivesse lido Crátilo, de seu amigo Platão, com mais atenção, decerto não estaria pagando tal mico. Mas você sabe, Deus é Deus e nem o Diabo o convence do contrário.
Não sei se por desconsolo da idade ou se por carência afetiva que nenhuma Santíssima supriria, Deus chorou como um bebê. Esqueceu que era Deus e caiu no melodrama. "Não posso morrer sem ler Henry Miller...", o Diviníssimo choramingou com o rosto enterrado numa almofada.
Se foi um acaso da Mortíssima bater perna no lugar errado mas na hora certa ou se tudo não passou de um acordo entre Ele e ela, isso eu não sei. O que sei é que hoje, meu amigo Haroldo Netto, o melhor tradutor do mundo, foi chamado às pressas para socorrer o Altíssimo...

8 comentários:

jac rizzo disse...

Lindo!!!
Que forma maravilhosa, deliciosa
de anunciar a partida do amigo!
Foi traduzir Sexus para Deus lá
no céu...

Escreva sempre!
Escreva muito!

Grande abraço.

Barbara disse...

Belíssimo! Posso imaginar o quão especial Haroldo é... para aliviar a carência divina que nem mesmo as Santíssimas conseguem suprir!

Sabe que semana que vem fará 9 anos que eu conheço suas palavras? Estava dando uma olhada no Panela de Afrodite, buscando pela receita de biscoitos amanteigados, e vi a data de quando ganhei o livro de um grande amor. Depois desse livro, diversos vieram até mim: A Cozinha da Bruxa, O Feitiço da Lua, Amor se faz na cozinha, Manual Mágico do Amor... Todos eles em forma de presente. As pessoas dizem que vêem seus livros e lembram de mim: "Tem tantas receitas e fala de plantas... a sua cara!" Adoro quando isso acontece! O livro das Santíssimas eu presenteei minha mãe, tão devota de Fatiminha. Obrigada por toda a magia derramada em meu caminho. Muito, muito obrigada.

Bom, desculpe-me por escrever esse tanto! Aliás, eu sou a babpe que te acompanha no twitter.

Abraço com carinho.

CHRISTINA MONTENEGRO disse...

'Tá lá, trabalhando; não há a menor dúvida!
BJS!

Anônimo disse...

A morte é tão simples, não é mesmo? Para mim é apenas um passo a mais nas sombras da realiade.
Excelente forma de se despedir. Finalizando. Awen...
Lunna

Patricia Pirota disse...

Que texto lindo!!!
Acho mesmo que nem o sr. Deus poderia morrer sem ler Henry Miller...

E aproveitando o ensejo. Já que vi um comentário falando sobre sua obra... Engraço-me a também falar...
Me lembro de ainda adolescente ler seu livro, O gozo das feiticeiras. Aquelas palavras tão cheias de magia e amor mudaram muita coisa em mim. E assim aconteceu com todos os outros livros seus que li. Cada um como se fosse uma chave a me abrir uma nova porta...
Agora me pergunto o porquê de nunca ter lhe dito isso abertamente. Não sei ao certo a resposta, mas acho que talvez seja pela vergonha de me dirigir a alguém a quem eu sempre considerei tantos degraus acima de mim.
Fato é que a admiro por demais. Por tudo o que já falou e escreveu. E por ter me ajudado, mesmo que sem saber, a continuar trilhando o caminho da magia de uma forma mais e mais apaixonada...

Tenha uma ótima semana!
o/

Luz disse...

Adoro seu estilo, nem sei se é melhor como bruxa ou como escritora... os dois vai hehhehe
beijos

Luz disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
JC Duarte disse...

Não sei se fico satisfeito por seu amigo estar lá, no Olimpo, se triste por aqui ficar explícito que, afinal, a onmipotência dos deuses fica aquém das barreiras linguísticas.
Felizmente que lusofonia cruza o atlântico, o pacífico, o índico, o vermelho, o mediterrâneo, o morto... Falta um para sete... pode ser o cáspio.

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Foi uma delícia escrevê-lo!