terça-feira, 14 de abril de 2009

Amor se Faz na Cozinha

Depois das refeições, Vitalina recolhia-se à cozinha. Lavava a louça, enxugava os pratos, arrumava os talheres na gaveta, sacudia a toalha de mesa e pendurava o pano de prato no varal do quintal. Depois, servia-se de um cálice de vinho do Porto, acendia um cigarro, sentava-se à velha mesa e ligava o rádio.
As notas de Moon Light Serenade aninhavam-se no bolso de seu avental que não era sujo de ovo, mas guardava estrelas. Sílvio Caldas, talvez por ciúmes de Duke Ellington ou por não resistir a um regaço moreno, aveludava ainda mais a voz e cantava só para ela. Vitalina gostava desses galanteios.
Cresci dentro de uma cozinha que cantava e recitava trechos de antigas novelas. Por premonição estética ou por vergonha de não saber ler, Vitalina tinha na cozinha (para ser usado no futuro) um grosso volume de poesias de Cruz e Souza. Não sabia decifrar as letras, mas aprendera a gostar do moço que morava dentro do livro . Ah, o livro. Um livro que aprendeu a falar à medida que na escola eu conhecia as letras. E, quando cheguei ao Z e ao domínio dos verbos, dos pronomes, das conjunções, dos hiatos e dos objetos diretos e indiretos, o moço do livro soltou a fala. Disse que era um poeta. Vitalina gostou tanto de suas palavras, que lhe pediu para trazer os amigos "para uma prosinha". O moço não se fez de rogado e trouxe um animado bando que, num piscar de olhos, transformou a velha cozinha num recanto boêmio.
Todos os dias, enquanto Vitalina refogava o feijão ou assava um bolo, lá se reuniam Neruda, Eluard, Camões, Castro Alves, Gregório de Matos, Rimbaud, Allen Ginsberg, Baudelaire, Elisabeth Bishop, Pound, Augusto dos Anjos, Dorothy Parker, Lorca... para beber licor de jenipapo ao som da Rádio Nacional e das histórias que Vitalina tão bem narrava.
O endereço da boemia espalhou-se, e vieram os pintores. Picasso ficou maluco com os potes de barro que Vitalina ganhara de Mestre Vitalino. Dali levou Gala. Goya chegou desacompanhado. Degas apareceu com umas bailarinas. Vieram muitos, aos bandos.
Os atores chegaram por último (trabalhavam até tarde), acompanhados por amigos cantores. Maria Callas chegou com Theda Bara, uma chegada triunfal; Callas nas vestes de Medéia, e Theda nas de Cleópatra. Procópio Ferreira surgiu com um querubim baixinho chamado Grande Otelo; Cacilda Becker com Pixinguinha e Donga; Fernanda Montenegro com uma nereida chamada Chiquinha Gonzaga. E foram tantos que lá foram, que eu poderia jurar que Eurípedes e Shakespeare também por lá apareceram.
Aos domingos, as mulheres da minha família se reuniam, e Vitalina narrava as artes da boemia. Ninguém se espantava. Afinal, eram bruxas, e se bruxas podiam voar em vassouras por que seria impossível poetas saírem dos livros, pintores surgirem das telas, atores representarem à mesa e cantores fugirem dos discos? Não, as "artes" não eram nada improváveis.
Os anos se passaram e a boemia cresceu. Vieram os vizinhos e em pouco tempo o bairro inteiro. Vitalina cozinhava e o improvável acontecia. Os noivos se casavam, os feios embelezavam, os malvados adocicavam, e os velhos rejuvenesciam.Um dia, Deus, que já estava cansado - e com ciúmes - de ouvir as histórias da tal boemia, não resistiu ao cheirinho do bolo que Vitalina assava e a chamou para viver com Ele.
Vitalina aceitou o convite e fez de Deus sua última conquista. Dizem que ela foi a primeira a conquistá-Lo pela boca.


obs: se você gostou de Vitalina, sua cozinha, seus amores, seus feitiços e seu "caso" divino , ela está inteirinha no meu livro "Amor se Faz na Cozinha", publicado pela Editora Bertrand.

8 comentários:

Carol disse...

tenho todos os seus livros (adoro) e, agora que estou gravida, senti falta de alguma orientacao que nao seja "medica" sobre isso. vc poderia me indicar alguma leitura? adoraria tb ouvir o q vc tem a dizer sobre gestacao/maternidade.

beijos e obrigada!

MARTHA THORMAN VON MADERS disse...

Fantastico! Você me fez ler 2 vezes, adorei!
Apareça por lá.
beijos e uma boa semana.

jac rizzo disse...

Realmente Amor se Faz na Cozinha!!!
Na cozinha de Vitalina!
Faz muito tempo, desde que Rubem
Braga morreu, que eu não gosto
tanto das palavras, como essas aqui,
as suas!

Me emocionei com Vitalina e seu
avental que guardava estrelas...

Andei fora por uns dias, mas
vou colocar seus livros na minha estante. Quero eles perto dos olhos e ao alcance das mãos!

Muito carinho.

Lisa Magalhães disse...

Ai aiiiii Marcita Marcita...
Como gosto dos teus escritos...

E Vitalina conheceu muitas e muitas pessoas que, parei agora para pensar, essa juventude de hoje nem faz idéia de quem sejam...

Bjuxxx

CHRISTINA MONTENEGRO disse...

Silvio Caldas com ciumes de Duke Ellington É TU-DO...rsrsrsrsrs...adoro...
MUUUUUUUUITO obrigada por ter entrado lá no meu territóriozinho.
Você e Chet são uma rara e preciosa honraria...
BJS!

marta, a menina do blog disse...

Adoro Vitalina!

Ana disse...

Lindo seu filho!
Parabéns pelo filho e pelo blog!
Bom fim de semana.

Anakoelho.

Adriana C. Braga disse...

Amei!!! Vou procurar seu livro, é claro!

Beijos de fã

Chet

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Foi uma delícia escrevê-lo!