sexta-feira, 24 de abril de 2009

Porciana & Persianas Genealógicas

Quando apareceu, optou pelos números. À direita, o número redondo da folha. À esquerda, escondido num canto iluminado pela tênue luz da lamparina, o número do termo. Muda, invisível, inodora, alheia ao tempo e à caligrafia rebuscada, quase apagada, do empertigado escrivão do cartório. "Moço esquisito", pensou, sufocada pelas paredes amarelecidas da sala abafada, sem sol. Quis abrir as janelas, mas as trancas eram altas demais para sua altura pouca.
Invisível, se valeu desse estado e levantou a saia pesada, negra, sustentada por muitas anáguas. Recolheu as ondas do oceano de panos e esticou as pernas ávidas de sol. Seu marido não viu. O moço esquisito não viu. "Quem foi que disse que a morte não traz vantagens?", pensou com os botões da blusa abotoada até o cume do pescoço.
No topo da montanha escarpada em curvas e grotas de carne, os botões abandonaram as casas, descendo pela encosta como alpinistas à frente de uma avalanche. Ninguém percebeu o imperceptível abalo nas tábuas enceradas do assoalho e com enfado o empertigado escrivão continuou a escrever que às nove horas da noite deste dia de mil novecentos e oito falleceu Porciana Roza de Jesus, de pneumonia, aparentando oitenta annos de idade. Pronto. A morte fora lavrada e assinada.
Livre da saia, das anáguas e da blusa, Porciana se exibiu para Deus exatamente como Ele gostava de espiá-la no riacho. Ergueu-se da cadeira à frente da mesa do moço esquisito e, esticando-se na ponta dos pés, finalmente conseguiu abrir a janela. Ninguém percebeu o imperceptível tornado que embaralhou as letras rebuscadas, quase apagadas, do termo de seu óbito para formar um cifrado recado: eu, Porciana Roza de Jesus (e de Deus), sua trisavó, declaro que dos pecados cometi todos; acumulei o brilho das estrelas no cofre da alma, emprestei amor a juros tão altos que poucos amantes puderam pagá-los, gemi de prazer à cada botão desabotoado, invejei todas as aves de migração, lambi cada torrão de açúcar como se fosse o último, cobicei a prata da lua e o marulho das ondas, amaldiçoei o Criador por não ter me feito sereia ... e que os "aparentes" oitenta anos declarados pelo doutor ficam por conta dos óleos com que ungi meu corpo nos meus noventa e sete anos de vida.

terça-feira, 14 de abril de 2009

Amor se Faz na Cozinha

Depois das refeições, Vitalina recolhia-se à cozinha. Lavava a louça, enxugava os pratos, arrumava os talheres na gaveta, sacudia a toalha de mesa e pendurava o pano de prato no varal do quintal. Depois, servia-se de um cálice de vinho do Porto, acendia um cigarro, sentava-se à velha mesa e ligava o rádio.
As notas de Moon Light Serenade aninhavam-se no bolso de seu avental que não era sujo de ovo, mas guardava estrelas. Sílvio Caldas, talvez por ciúmes de Duke Ellington ou por não resistir a um regaço moreno, aveludava ainda mais a voz e cantava só para ela. Vitalina gostava desses galanteios.
Cresci dentro de uma cozinha que cantava e recitava trechos de antigas novelas. Por premonição estética ou por vergonha de não saber ler, Vitalina tinha na cozinha (para ser usado no futuro) um grosso volume de poesias de Cruz e Souza. Não sabia decifrar as letras, mas aprendera a gostar do moço que morava dentro do livro . Ah, o livro. Um livro que aprendeu a falar à medida que na escola eu conhecia as letras. E, quando cheguei ao Z e ao domínio dos verbos, dos pronomes, das conjunções, dos hiatos e dos objetos diretos e indiretos, o moço do livro soltou a fala. Disse que era um poeta. Vitalina gostou tanto de suas palavras, que lhe pediu para trazer os amigos "para uma prosinha". O moço não se fez de rogado e trouxe um animado bando que, num piscar de olhos, transformou a velha cozinha num recanto boêmio.
Todos os dias, enquanto Vitalina refogava o feijão ou assava um bolo, lá se reuniam Neruda, Eluard, Camões, Castro Alves, Gregório de Matos, Rimbaud, Allen Ginsberg, Baudelaire, Elisabeth Bishop, Pound, Augusto dos Anjos, Dorothy Parker, Lorca... para beber licor de jenipapo ao som da Rádio Nacional e das histórias que Vitalina tão bem narrava.
O endereço da boemia espalhou-se, e vieram os pintores. Picasso ficou maluco com os potes de barro que Vitalina ganhara de Mestre Vitalino. Dali levou Gala. Goya chegou desacompanhado. Degas apareceu com umas bailarinas. Vieram muitos, aos bandos.
Os atores chegaram por último (trabalhavam até tarde), acompanhados por amigos cantores. Maria Callas chegou com Theda Bara, uma chegada triunfal; Callas nas vestes de Medéia, e Theda nas de Cleópatra. Procópio Ferreira surgiu com um querubim baixinho chamado Grande Otelo; Cacilda Becker com Pixinguinha e Donga; Fernanda Montenegro com uma nereida chamada Chiquinha Gonzaga. E foram tantos que lá foram, que eu poderia jurar que Eurípedes e Shakespeare também por lá apareceram.
Aos domingos, as mulheres da minha família se reuniam, e Vitalina narrava as artes da boemia. Ninguém se espantava. Afinal, eram bruxas, e se bruxas podiam voar em vassouras por que seria impossível poetas saírem dos livros, pintores surgirem das telas, atores representarem à mesa e cantores fugirem dos discos? Não, as "artes" não eram nada improváveis.
Os anos se passaram e a boemia cresceu. Vieram os vizinhos e em pouco tempo o bairro inteiro. Vitalina cozinhava e o improvável acontecia. Os noivos se casavam, os feios embelezavam, os malvados adocicavam, e os velhos rejuvenesciam.Um dia, Deus, que já estava cansado - e com ciúmes - de ouvir as histórias da tal boemia, não resistiu ao cheirinho do bolo que Vitalina assava e a chamou para viver com Ele.
Vitalina aceitou o convite e fez de Deus sua última conquista. Dizem que ela foi a primeira a conquistá-Lo pela boca.


obs: se você gostou de Vitalina, sua cozinha, seus amores, seus feitiços e seu "caso" divino , ela está inteirinha no meu livro "Amor se Faz na Cozinha", publicado pela Editora Bertrand.

domingo, 5 de abril de 2009

O Flamengo & Dalva

Quando Dalva nasceu, seus pais nem de longe desconfiaram que ela seria flamenguista. Portugueses de fé e crença, apostaram nas caravelas e na maresia fadista de Amália: Dalva seria vascaína e os raios que os partissem se assim não fosse.
Nos primeiros meses de vida, Dalva demonstrou a estranha habilidade de acompanhar os acordes das guitarras portuguesas com o telecoteco do chocalho. Enquanto o fado desenhava no ar o lamento ladrilhado da Mouraria, Dalva ritmava a alma lusitana com o batuque de Sinhô e Donga.
Até então o samba não tatuara as lajotas daquela casa que a essa altura já não era mais, com certeza, uma casa portuguesa.
Por volta dos cinco anos de idade, quando seus pais ainda nutriam esperanças cruz- maltinas, Dalva surpreendeu-os no dia em que despachou um pratinho de farofa ao lado do galo lusitano que guardava a casa, do alto da cristaleira.
Depois de muitas farofas regadas com azeite puro de dendê, Dalva surpreendeu-os ainda mais quando, aos quinze anos de idade, trouxe para dentro de casa uma estranha entidade: um diabo vermelho e preto a segurar uma bola de futebol.
Como era uma bola, e não um tridente, os pais de Dalva pensaram que o diabo era mais um santo e deixaram que ela o colocasse no altar, juntamente com um radinho de pilha. Das alturas, já enfadado com as milenares tardes de descanso, Deus aprovou o sacrilégio.
O convívio do diabo rubronegro com os outros santos transcorreu pacífico e, se não fosse pela estranha nódoa vermelho e preta que "do nada" surgira no manto azul de Nossa Senhora de Fátima e pelo pulinho que Santo Antônio dava, toda vez que o rádio gritava GOOOOL, se poderia mesmo dizer que tudo corria às mil maravilhas.
A devoção de Dalva pelo estranho santinho era tão intensa que acabou por provocar milagres: da noite para o dia, depois de uma tarde inteira de novena ao pé do radinho de pilha, a cidade se abria em ruas coloridas por bandeiras rubras a tremular ao som do batuque negro. O domingo cerrava a cortina anunciando uma segunda-feira em festa.
Na feira, os portugueses vibravam com a montanha de frutas, verduras e legumes que a cidade consumia. Não sei se por razões econômicas ou por milagre mesmo, a Lusitânia se viu repartida entre dois amores. De um lado, lá dos confins do Atlântico, o mar lisboeta tremulava ondas cruz-maltinas; do outro, a fartura esbanjada do rebolar da alegria vertia sangue, suor e cerveja nos seus corações.
No dia em que o coração lusitano abriu-se de vez para a fé sanguínea da pequena Dalva, aconteceu o derradeiro milagre: lá pras bandas de Quintino nascia Zico, o menino que Deus enviou ao mundo para alegrar ainda mais os seus dias de descanso.
A alegria foi tanta que Deus efetivamente se fez brasileiro. Disfarçou-se de Joaquim Pereira e foi à Gávea requerer a cidadania.
Ao morrer, Dalva pediu que a enterrassem com a bandeira do Flamengo e o radinho de pilha. As pessoas pensaram que era desejo de torcedor e atenderam o seu pedido. O que elas não sabiam é que o pedido tinha partido de Deus...

Chet

Chet

Home Sweet Home

Home Sweet Home
Que buraco é esse que me faz comer a geladeira?

Livros & Livrarias

Livros & Livrarias
Livrarias são janelas. Livros olham o mundo.Livrarias libertam. Livros revolucionam.

Senhoras do Santíssimo Feminino

Senhoras do Santíssimo Feminino
O poder sagrado Delas.

A Pergunta de Lacan

A Pergunta de Lacan
O mistério do gozo das mulheres

Afrodite & Panelas

Afrodite & Panelas
E no princípio era a GULA...

A Casa

A Casa
O mundo olha pelas nossas janelas...

Um Lance de Dados

Um Lance de Dados
Jamais abolirá o acaso

O Caldeirão

O Caldeirão
Ele não está no final do arco-íris

Armário e Gavetas

Armário e Gavetas
O que será que eles revelam?

Minha Cozinha

Minha Cozinha
Onde tudo começou.

Meus Segredos

Meus Segredos
Laços e refogados culinários

Nossas Luas

Nossas Luas
E são treze...

Seduções & Devaneios

Seduções & Devaneios
Eu o escreveria mil vezes!

Guadalupe, a Santíssima Mestiça

Guadalupe, a Santíssima Mestiça
Como amei descrevê-la!

Amor e Cozinha

Amor e Cozinha
Foi uma delícia escrevê-lo!