terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Freud, a Mortíssima & Eu

A Mortíssima bem que podia ter me avisado que levaria Maria Luiza em pleno sono. Mas não, preferiu se fazer de sonsa e não avisou. Fingiu despreocupação supérfula e optou por perguntar pelo capítulo da novela que perdera na véspera. "Dia afobado. Andei tanto que estou cheia de bolhas nos pés," ela disse, exibindo os pés descarnados. Como se bolhas brotassem de ossos...
Fingindo não dar atenção ao meu desconforto, acomodou-se de crânio e ossos na poltrona mais confortável da sala. "Morreu tranquila... sonhando com seu pai," disse enquanto escorregava um biscoito pela boca escancarada, sem goela. O que sabia ela de sonhos? Atarefada pelo ofício de recolher almas - e corpos - , a Mortíssima mal diferia de um gerente de banco ou de um burocrata que sorri para rostos sem faces. Que pelo menos ela não tenha sorrido quando estendeu as mãos ossudas para minha mãe... Que tenha tido a gentileza de esperar o final do sonho...

Alheia aos pensamentos que revolviam meu cérebro como larvas de bicheira de cavalo que perfuravam toda a massa encefálica até torná-la fluida, impalpável enxaqueca, a Ossuda prosseguia com o rol de assuntos descarnados, maquiados com os mesmos tons das visitas que chegam sem chegar. Gutural, áspera, arenosa, lodosa, sua voz penetrava pelos meus ouvidos como uma agulha de tricô metálica, comprida, fina... que tricotava medonhos buracos entre o coração e o esôfago. Devo ter demonstrado claramente a minha agonia porque que lá pelas tantas seus ossos paralisaram num olhar oco, encovado. Do fundo das duas covas rasas, empedradas, secas, depauperadas, eclodiu um eco: por que você, monte de ossos, não me avisou antes?

Indiferente, a Mortíssima sacolejou os ossos, ajeitou o crânio, alongou as extremidades ossudas e olhou para o relógio à parede. Quarenta e cinco minutos exatos tinham transcorrido desde a sua chegada. Em impassível indiferença a Ossuda se foi, sem se despedir nem agendar uma nova visita...

5 comentários:

Anônimo disse...

Olá Marcia, tudo bem?
Devo lhe dizer que adorei o texto, sigo o blog e, sempre que der, estarei por aqui acompanhando as atualizações.

Um beijo!

Carla D. disse...

Parabéns Márcia, gostei muito do texto, do blog e tudo mais.
Admiro seu trabalho e personalidade há muito tempo com bastante admiração.
que 2010 seja um ano de muito amor e sucesso!!

Carla D.

Heloisa de Mesquita Inoue disse...

Com essa pequena amostra de texto, não vejo a hora de ler o seu proximo livro, quando sai???

Unknown disse...

Também tive algumas visitas da Ossuda embora seja jovem, mas a magia em mim se manifestou muito cedo. Duas dessas visitas foram avisadas antes em sonhos, que foram a despedida da minha avó e minha mãe.
E por experiencia te digo saber não é legal, pois quando elas precisam que vc as encha de vida no leito da morte ou na ultima visita. O fundo dos seus olhos não brilha e não consegue esconder delas o que sabe.
A vantagem é poder aproveitar os ultimos momentos.
Mas confesso preferia não ter sido avisada!
Abencoada voce que teve essa chance!!!
Sempre que bate a saudades hoje, penso com muito carinho no que me ensinaram e vejo 2 anjos que me ajudam quando preciso!

Eross Wertt disse...

Sempre que fala na Ossuda, me lembro do Puro Osso, das Loucas Aventuras de Billy e Mandy
já leu A Deusa Branca, do Graves?
a proximidade de Yule pro hemisfério norte, e suas perdas, te deixam sombria.
Fale um pouco mais de Vida, afinal a Morte aparece pra nos lembrar de valorizar a vida!

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