quarta-feira, 23 de abril de 2008

Dali, Daqui, De Lá, De Acolá.

A variedade de universos que se escondia dentro dos banheiros da minha vida nunca me deixaram constrangida nem culpada pelas transformações. Essas transformações faziam parte da tradição mágica das mulheres de minha família. Assim, não me assustei quando aos cinco anos inundei as pastilhas brancas do assoalho com o sangue vívido e pastoso de uma fenda no pé, produzida pela lâmina vítrea de um caco de Chanel5. O âmbar do perfume mesclou-se com o vermelho do sangue, pontilhando ilhotas de lajotas portuguesas. Portugal nunca esteve tão próximo e tão concreto para mim. Naquele instante fui Carmina, Urraca, Afonsa, Domingas e todas as mulheres que me antecederam numa Lusitânia mais além da baía de Guanabara. Não tive medo. O sangue pingou os rostos ocultos na minha face.
Quando os adultos me encontraram no banheiro, gravando no chão as pegadas de um jogo sanguinolento de amarelinha, custaram a entender a razão do meu silêncio; e, sem argumentos, preferiram atribuí-lo ao choque. Eu estava em estado de choque, cortada pela lâmina de Oyá e fulminada pelo seu raio.
Somente Virgínia, a senhora avó da verde Mangualde, viu o rosto da Deusa refletido na transparência da água que vertia do chuveiro. Somente Virgínia viu as faces ocultas na face de uma menina que, no dia em que completava cinco anos, escalou as brenhas íngremes da Serra da Estrela, disfarçadas em bancos de madeira, e travestiu de neve a chuva de granizo que insistia em cair lá fora. E foi nessa hora em que enxergou séculos nos meus cinco anos que Virgínia disse: "A miúda cortou-se como se cortou minha mãe!".

Nesse dia, muitos anos antes de ler, Oui 2, L' arcangelisme scientifique de Salvador Dali, entendi as suas palavras:


Minha metamorfose é tradição, porque tradição é precisamente mudança e reinvenção de uma outra pele. Não se trata de uma cirurgia estética ou de uma mutilação, e sim de renascimento. Eu não renuncio a nada. Eu continuo.
+ + +
Texto extraído do meu livro A Casa da Bruxa, publicado pela Editora Planeta

13 comentários:

Anna Carla Lourenço do Amaral disse...

Tenho este livro e adoro.
Muito bom reler suas obras fatiadas, saborosas como uma torta recem saída do forno!
Não poderiam ser mais mornas e acolhedoras, pois que saíram do seu coração e demonstram aos picados a tua alma de bruxa!
Um beijo grande, do tamanho do luar!

Anna Carla Lourenço do Amaral disse...

Ah, se puder, passa lá no Caderno (http://www.cadernodecabeceira.blogspot.com/) e dá uma espiada na minhas besteirinhas, rs, sua opinião é muito importante para mim.
Mais beijos e mais luas!

Hella G. IRDIN disse...

Oh Rita...
Grata pelo seu sincero comentário e agradecida pelo convite.
A primeira impressão de seu blog é reconfortante, reverbera essa ancestralidade feminina.
Realmente herdar e seguir a tradição é um acolhimento e uma sabedoria em si mesmos, algo talvez que toca muito mais nós mulheres. Ressôa em mim essa frase acerca da tradição.
Voltarei sempre que puder...
Rufar de asas, beijo no coração.

Germano Viana Xavier disse...

Olá,Frazão!

Passei por aqui...
Gostei do blog!

Abraços pernambucanbaianos!

Germano
www.clubedecarteado.blogspot.com

Unknown disse...

OIIII!
Eu adoro vir aqui no seu blog, venho bisbilhotar sempre que posso. è muito bom lêr histórias de pessoas que são parte de mim, da minha história familar, mas que infelizmente não tive o prazer de conviver com elas. Essas histórias adoçam minha boca, e minha alma!
Bj...
Fernanda Lima.

MARTHA THORMAN VON MADERS disse...

Volto aqui, porque este lugar é mágico. Adoro ficar aqui e devorar tudo que minha alma adora. Beijos
Hoje fiz uma postagem nova.se tiver um tempinho livre apareça por lá.Beijos
marthacorreaonline.blogspot.com

Retalho de Lua disse...

Casas... mulheres... filhas... avós... metamorfoses... mil luas.

Guto Leite disse...

Ótimo te ler de novo na ativa depois de alguns tempos de silêncio. A melhor prosa é a que me dá silêncio íntimo! A tua me faz isso! Grande abraço e ótima semana

Anônimo disse...

Estava passeando pela internet e vi seu blog,fiqueiimpressionada,vc escreve muito bem!...embora eu goste mais de poesia propriamente dita,fico contente em ver q ainda existem pessoas q pensam por si mesmas...que fazem coisas novas,ou,novas formas de dizer coisas antigas...rsrsrsrs...enfim,gostei muito! =)

Jô Gadonski disse...

Que blog gostoso! haha...

Lí seu texto sobre a inveja, achei extremo interessante como tu descreveu " a senhora sem rosto"...

Um grande abraço,Marcia.
Um abraço pro Daniel também.

Nalu A*) disse...

Que delícia ter achado seu blog...Abraços

Leonor disse...

este seu post está muito bom. escreve muito bem, já lhe tinha dito?

é sempre com prazer que venho aqui ler os seus escritos, mesmo que nem sempre comente. Portugal, de repente, fica mais próximo, vindo do Brasil

beijos, bom fim de semana

Maira Macri disse...

Querida... Eu adorei o seu blog! Sempre cheio de informações e encantos, realidade e fantasia misturados!
Eu já tinha te falado, lá no orkut qdo te postei um scrap, que linkei o seu blog com o meu. Mas agora também vejo avisar que coloquei um cantinho de meus livros de cabeceira lá no meu blog e postei uma imagem do seu livro "A Cozinha da Bruxa" e um breve resumo! Caso te cause algum desagrado, por favor, me avise, que eu logo retiro de lá!
Beejuus...
Sucesso sempre!!

Chet

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Foi uma delícia escrevê-lo!