quarta-feira, 2 de abril de 2008

Sono de Açúcar

Um dia, logo após uma tempestade que quase varreu o Rio de Janeiro, Maria Luiza caiu num sono profundo. A princípio, ninguém percebeu a profundeza do sono, já que todos estavam ocupados com as notícias da tempestade. Ruas foram varridas pelas águas, palmeiras se transformaram em pinguelas no meio do asfalto, móveis viraram barcos e até pessoas foram engolidas pelos bueiros. Alguns juravam ter visto polvos emergirem das poças e jacarés saírem dos ralos. Uma senhora chegou a afirmar ter visto Nossa Senhora da Conceição brotar de um chafariz e curar um enfermo. Se curou ou não, até hoje não se sabe; o chafariz continua na praça e vez por outra amanhece cercado de velas e santinhos de agradecimento.
Enquanto todo mundo se ocupava com a tragédia que assolara a cidade, Maria Luiza dormia. Dormiu por três noites e três dias. Ninguém achou estranho. Vera chegou a dizer que chuva dava sono. E deu sono. Muito sono. Ninguém ousou acordá-la, e ela acabou acordando sozinha, com uma baita fome de doces. Comeu todas as compotas da casa, depois as geléias e por fim todo o açúcar da despensa. Ninguém achou estranho. Maria Luiza tinha hábitos estranhos. Depois de tanta comilança, caiu outra vez no sono. Mais uma vez ninguém achou estranho e deixou que ela dormisse. Acordou quatro dias depois, trazendo consigo um menino invisível, um moleque chamado Manequinho da Praia. Dessa vez, estranharam e chamaram os doutores. Os médicos disseram que ela sofria de desordem da personalidade. Vitalina balançou negativamente a cabeça e disse: "Ela é médium."
Depois da tempestade sonífera, Manequinho passou a conviver na casa. Vez por outra, quando o céu enegrecia e os raios gritavam no céu, nós lhe dávamos um doce. A chuva caía mansa e não enchia a cidade.


Texto extraído do meu livro "Amor se Faz na Cozinha", publicado pela Editora Bertrand

Um comentário:

Quimera disse...

Texto maravilhoso!
Beijosss

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