Quando Ele me revelou o rosto na segunda-feira do último carnaval, custei a acreditar que fosse o Santíssimo. Afinal, durante toda a minha vida eu escutara histórias que narravam as aparições solitárias, os auto flagelamentos, os jejuns de quarenta dias, as visões da clausura e até a épica de Charlston Heston travestido em Moisés. Mas no carnaval!? Espalhado no pipocar do trio elétrico, vestido de mulher em plena avenida Rio Branco, tocando tamborim na bateria da Camisa Verde, esguichando água-de-cheiro num cordão de Olinda? Ah, não!!! A aparição não correspondia em nada às lições do catecismo, aos relatos episcopais e muito menos aos roteiros de Hollywood. Se ao menos se avistasse por perto um deserto escaldando tentações, se houvesse ao dispor um topo de montanha e umas tábuas de pedra, uma cela de convento ou até mesmo um vislumbre de luz em meio às trevas... Mas não, Deus tinha que achar de anunciar a Sua Santíssima presença com ziriguidum e telecoteco!
Não contente com tal anunciação, Deus vestiu uma camisa listrada e saiu por aí a jogar confete e serpentina nas meninas. De vez em quando, cansado do sexo dos meninos, vestia os balangandãs e as rendas da baiana, só pra ver o que é que a baiana tem. E foi numa hora de troca-troca de fantasia que Deus me deu uma segunda revelação: Ele é menino e menina.
Eu, do alto do pensamento tomista, vi os primeiros tomos despencarem da estante quando O flagrei mergulhado num copo de cerveja e com a boca (e que boca!) lambusada do azeite que escorria de um pastel de carne. Naquela hora não deu para recorrer aos compêndios da escolástica, não deu para pedir socorro a Agostinho (que a essa altura se confessava no colo de uma passista da Mangueira), não deu para encontrar Maria nem Gabriel. A Virgem tinha saído cedo de casa, levando o menino Jesus - uma gracinha de criança, fantasiada de índio- para ver a banda passar, e Gabriel andava sumido, enfiado sabe-se lá onde, desde a noite de sexta-feira...
Além de abandonada pelos santos, me vi sem pai nem mãe quando procurei a filosofia. Ela, vexada pela afirmação do espírito e pela eliminação do corpo de Deus, se enfurnara num retiro filosófico, deixando na secretária eletrônica o aviso que só retornaria na quarta-feira de cinzas. Tive então que mirar o fato na seca, sem anestesia. E lá estava Ele, de corpo e alma, espalhado entre milhões de rostos que berravam Mamãe Eu Quero. Foi nesse instante que um jato de lança-perfume reativou o inconsciente e descobri que Deus é a apoteose do Desejo de Lacan. Deus, além de Onipresente e Oniciente, também é Inconsciente e Desejo.
Quando decifrei o quero do mamãe eu quero, me benzi três vezes, ciente de ter revelado o irrevelável. Aguardei os inquisidores com a dignidade própria dos pecadores. A espera foi longa. Além do trânsito ficar um caos no carnaval e por isso ter que dar voltas e voltas pelas ruas da cidade, a Inquisição ainda teve que dar um pulinho nos barracões das Escolas para tapar a sexualidade divina de algumas alegorias, alas e destaques.
Enquanto aguardava a chegada dos Guardiões da Fé, da Moral e dos Bons Costumes, liguei a televisão. E lá estava Ele outra vez a revelar-Se desejo na voz de Margareth Menezes, na Bahia de Caetano, João Gilberto, Dona Canô e Dorival, nas tranças de Gil e no rodopio dos abadás seguindo Ivete, Daniela, Dodô e Osmar. Lá estava Deus, do alto de um trio elétrico a revelar um outro mistério: Deus é brasileiro em sotaque, acento e desejo.
sexta-feira, 4 de abril de 2008
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Um comentário:
A Filosofia que estudamos não foi em vão! Alimenta nossa literatura!
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