Naquela manhã, João já estava morto quando saiu de casa. E de nada adiantou o sol a lhe machucar as vistas, o cheiro do café ralo a embrulhar o estômago, o pão duro a quebrar os poucos dentes que tinha, a gilete enferrujada a ziguezaguear pelas alamedas rugosas da face que já não reconhecia no espelho, porque a Morte já havia chegado, faz tempo.
Por teimosia ou por falta de dinheiro para o enterro, não foi enterrado. Apodreceu sem fedor, inodoro, sem vermes a comer uma carne que já não tinha, sem moscas a ciscar açúcar em tanta azedura. Azedo. Virou morto-azedo. Um cadáver amargoso a varejear pelas ruas, em busca da vida doce que a televisão prometia. Um cadáver que de tão morto, humilhado e ofendido, não encontrou forças para morrer morrido. E assim, sem morte morrida nem vida vivida, virou vácuo. E como o vazio é uma sacola cheia de nada, se acostumou com a metafísica substância. Tinha nada, recebia nada, esperava nada, sonhava nada, vivia nada.
Por nadificação ou por aposentadoria a nadificar o tudo de suor que lascou numa época em que foi quase vivo, acostumou-se com a falta de comida, a falta de gosto, a falta de remédios, a falta de dentes, a falta de dignidade, a falta de bolsos, a falta de luz, a falta de conforto, a falta de si e até a falta que ele para os outros não fazia. Virou falta plena. Tão faltoso que nem dor mais sentia.
Se fosse eu ou você a viver o nada, certamente o faríamos por filosofia, mas João era diferente e o vivia por pura agonia. Uma agonia sem as angústias da psicologia. Agonia crua, sangrenta e mal passada como os bifes que ele não comia. Agonia agoniada como as contas claustrofóbicas na gaveta. Agonia assombrada como as parcas moedas a balançar no bolso. Agonia de um dente a doer sem estar na boca, de um coração a arder sem estar no peito, de um tumor a crescer dentro de um cérebro que perdeu a cabeça...
Por piedade de um Deus descrente dos homens ou por um tico de esperança que ainda tinha, João saiu de manhã para receber a aposentadoria. Arrastou as pernas que já não tinha, por avenidas, ruas, becos e vielas. Cruzou o mundo dos vivos fazendo esforço para não fazer barulho nem incomodar. Em silêncio se postou na fila do banco, que de tão grande virava a calçada. Não reclamou (o nada nunca reclama ) e penou seis horas debaixo do sol. Quando chegou ao guichê, Deus se revelou em divina maldade e o matou de susto: a aposentadoria fora suspensa por artimanhas da burocracia.
domingo, 6 de abril de 2008
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3 comentários:
Que delícia de humor, Márcia. Uma semana muito inspirada!
Pensei que no fim ele não ia sentir é nada... afinal, de tanto 'nadar' a passividade era o que não era, fazia o que não fazia, via o que não via...
Mas, ainda assustou.
Será que pelo 'nadar da carruagem', o susto seria ínfimo para quem sente, mas quem não sente nada, quando sente assusta tanto que o susto assusta o susto, e esse morre de susto?
Vai saber não é?
Bjuxxx fiota!
Ótima semana
gostei de ler esse blog ..
parabéns, voltarei.
"Sim, a vida é um corte. Toda vez que você caminha rua abaixo, ou mesmo olha pela janela, sua consciência é continuamente cortada por fatores fortuitos".
O Livro Invisível de Willian Burroughs
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