sábado, 5 de abril de 2008

Maria e o Tinhoso

Mesmo faltando-lhe quase todos os dentes, Maria era bonita. Uma beleza matuta, envergonhada, com cara de riacho e cheiro de roupa quarando ao sol. Não era de muitas palavras e olhava pro mundo pedindo licença. Como se os olhos incomodassem. Não. Como se ela fosse um incômodo que incomodava sem ela saber porquê. Assim, incomodada por incomodar, a ela só restava um enorme par de olhos que olhavam sem olhar. Olhava de beira, margeando o visível, esgueirando o foco, e procurando o chão. Chegou como as Marias costumam chegar : invisíveis, anônimas, desterradas. Tocou a campainha, entrou, e foi logo lavando a louça e limpando as janelas. Não foi preciso ninguém mandar. Uma empregada exemplar. Ninguém lhe perguntou o sobrenome e o nome foi só pra constar. Depois arrumou as tralhas no quartinho dos fundos, pendurou o terço, uma fotografia de sabe-se lá quem, e encolheu-se na cama. Dormiu de banda, retorcida como um galho torto, uma pedra lascada e um cotoco de gente. Sonhou com o sertão, com a terra dos olhos que olham sem olhar. Se fosse eu ou você a sonhar com esqueletos barrigudos e cadávares embalados em rede, certamente seria um pesadelo, mas pra Maria era sonho. Acordou antes do sol acordar. Pisou no chão com cuidado, temendo que o chão fosse se incomodar. Arrastou-se até a cozinha e preparou o café. Não tomou. Esperou que todos acordassem e lhe deixassem o resto. Que pra Maria não era resto, era o que tinha pra comer neste mundo de Deus. Os patrões não gostaram. Aguado demais! Abaixou a cabeça e sorriu. Maria sorria quando era pra chorar. Voltou ao fogão e fez tudo de novo, sem reclamar. Uma empregada exemplar! Vez por outra conversava comigo, me contava histórias dos doze irmãos que ficaram no norte, lá pelas bandas da Paraíba. Narrava histórias de defuntos e mulas que soltavam fogo pelas ventas. De si, pouco falava. Não por não ter o que contar e sim por não querer incomodar. E se eu por acaso insistisse, ela respondia : "Que vida pode ter alguém que nem chegou a nascer?" E de nada adiantava tentar convencê-la deste engano, pois de tanto conviver com a morte, defunto, mula sem cabeça, cadáver barrigudo, ela acabou por achar que o mundo era dividido entre os mortos e os nascidos. E se fosse eu ou você a elaborar este pensamento, seria metafísica, mas pra Maria era fado mesmo! Um dia Maria chegou mais animada do que de costume. Os olhos brilhavam e me olhavam. Perguntei-lhe o motivo de tanta alegria, e ela disse que um herói ia chegar de avião. Acostumada com as histórias das almas penadas, achei que o herói de avião era coisa da sua imaginação. Mas não era! O filho do patrão, um sujeito metido a marxista, tiete de Fidel e Che, ia voltar de uma excursão lá pelos confins da Europa. Maria pouco sabia de Marx, mas pelo que ouvia por detrás das portas, concluiu que ele era o anjo de Conselheiro, e o filho do patrão, o homem que ia fazer o mar virar sertão. De nada adiantou previni-la de uma provável decepção. Maria cismou que o rapaz era o anjo da sua tão esperada concepção. Até que chegou o dia do retorno do tal herói. Chegou empinado, ereto como um bambu, e nem olhou pra Maria e muito menos lhe deu bom-dia. Passou por ela sem vê-la, deixando um rastro gelado e uma catinga de senhor de engenho. Maria conhecia o cheiro e o associava ao chifrudo. Benzeu-se três vezes e jogou sal pelas costas. O herói era o tinhoso. Padre Cicero já havia avisado... O tempo passou com Maria evitando ser olhada pelo canhoto. Tremia de medo quando ele passava ao seu lado, e um dia chegou até ver o rabo do coisa ruim. Pensou em ir embora, mas lembrou que não tinha pra onde ir. Foi ficando. Ela e o Tinhoso. O Tinhoso e Ela. De noite, rezava pra Padre Cicero, Conselheiro, e São Marx ( nunca consegui convencê-la de que Marx tinha horror às santidades) . Depois agarrava o terço, fechava os olhos, e lá se ia pras bandas dos mortos, dos não nascidos... Um dia, o herói que não era herói e era o tinhoso acusou-a de roubar uma toalha. Vixe! A toalha que secou os pêlos do canhoto? A barriga embrulhou e os cabelos arrepiaram. Mas ninguém percebeu. Foi mandada embora no meio da noite. Não tinha nenhum lugar para ir. Saiu carregando a trouxa, um disco do Roberto Carlos, e um porta retrato com uma foto de São Marx. Nunca mais foi vista. Afinal, ela nem tinha nascido. O Tinhoso? Ah!... esse anda por aí, muito bem empregado, presidindo uma estatal.


Foto de Sebastião Salgado

Um comentário:

Eleonora Marino Duarte disse...

!Márcia!,

sensacional!

um beijo!

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