Se a torcida esticasse um pouco mais os olhos, se deixasse de agitar tanto as bandeiras e voltasse a razão para o campo, pela primeira vez veria o Maracanã sem bola. Mas não olhou. O jogo terminou zero a zero.
Zefa, que da vida já tinha visto de um tudo, olhou para o Cristo Redentor e se benzeu três vezes. O Cristo, por rigidez geológica ou por desgosto de torcedor, mandou-a procurar explicação nos quintos do inferno, esquecendo-se de que ela não tinha dinheiro para a passagem. O jeito foi ir a pé.
Caminhou trezentas noites e trezentos dias, e não havia jeito de chegar ao inferno. Vez por outra parava "pra descansar o lombo e tomar um fresco", como ela mesma dizia. Nessas horas, proseava com as pessoas e tomava ciência dos acontecidos no campo. Horror, só horror...
"Mudaram de time quatro vezes!", um dizia. "Em vez de apito, o juiz corre pelo campo, carregando um livro preto e jurando sobre ele", outro comentava. "Rasparam os cofres do time", outro mais confidenciava, olhando pros lados com medo. "Confiscaram o pastel chinês e fizeram suco do pasteleiro", denunciava um outro, sem querer se identificar. Zefa ouvia as notícias enquanto roía um pão sem mortadela, duro como a cabeça de torcedor...
Depois de caminhar por mais alguns dias e noites, chegou finalmente no endereço do Cruz-Credo. Tocou a campainha, esperou sete minutos e só então foi recebida.
O Diabo - um sujeito visivelmente emergente, labioso, escorregadio e maneiroso (um pouco acima do peso e baixo de estatura, devo confessar) - era a cara escrita e escarrada da dupla pereba. Zefa se benzeu seiscentas e sessenta e seis vezes e, por pouco, muito pouco, não explodiu o inferno. Saiu correndo, agarrada ao terço da finada avó, fula da vida por ter sido enganada por Cristo.
Não sei se pelas linhas tortas de Deus ou por medo do castigo divino, a raiva durou pouco e Zefa voltou pra cidade sem olhar pra trás (se olhasse, veria que o inferno se recompõe na velocidade do fogo e que os demônios já preparavam as faixas para o próximo campeonato). Dessa vez não parou pra descansar o lombo, tomar um fresco, assuntar notícias e roer pão duro. E mesmo se o fizesse, de nada adiantaria: os poucos lugares tranqüilos tinham ido pro espaço; as pessoas haviam se trancado dentro de suas casas, vedado as janelas e blindado as portas; as notícias despencavam dos helicópteros, em rajadas de pétalas de rosas que feriam mais do que as balas das metralhadoras que cruzavam o céu; e o pão duro fora roído no meio do caminho. "Dia de jogo", Zefa pensou com seus botões ao ver a cidade vazia.
Procurou no bolso um ingresso, consultou o relógio e viu que ainda dava tempo de impedir que os dois pernas de pau entrassem no campo. Ledo engano! Quando chegou no estádio, foi barrada pela galera amontoada nas grades da geral: sob custódia. Negociou argumentos e se valeu até da religião. Não houve santo que arredasse o pé da multidão encarcerada em fúria.
Talvez por sadismo divino ou por falso milagre súbito, Zefa encontrou uma brecha e cruzou as grades. Mas era tarde, muito tarde. Ao olhar o campo, viu o que vira no dia em que os cartolas e a torcida apresentaram os dois jogadores: no verdor do gramado uma cabeça humana, empapada em sangue e tripas, rolava entre dribles e firulas.
Ao final do segundo tempo, com a torcida muda e aterrorizada, veio o gol da vitória com sabor amargo de derrota. Ninguém comemorou. O gandula recolheu as cabeças espalhadas no campo e os dois jogadores se recolheram ao vestiário. Não deram entrevistas. Não comentaram o jogo. Saíram pelo portão lateral. Mudos e arrogantes, a fazer planos para o Campeonato Nacional...
Este texto foi escrito quando um bizarro casal governava o Rio de Janeiro.
2 comentários:
Adoro vir aqui.teus textos e imagens são lindas.Hoje fiz um comentário novo,se tiver tempo passa por lá.Um abraço
O texto é uma delícia, como estamos habituados.
Mas faltam-me os conhecimentos históricos sobre esse lado do atlântico para identificar a referencia final sobre o casal e seu tempo.
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