Nas casas de minhas avós os altares se espalhavam por todos os cantos. "Nichos de recordações", Vitalina explicava a qualquer visita que perguntava. "Saudades de Portugal", Virgínia respondia, oferecendo ao curioso uma taça de ovos nevados.
As respostas chegavam aos ouvidos das visitas como excêntricas heresias. "Perversão carola", eu cheguei a ouvir de um vizinho de Vitalina, um senhor que batera à sua porta para reclamar da bagunça que as crianças da rua faziam em seu jardim e se assustara com o pequeno altar que Vitalina erguera sobre um pomposo rádio de madeira. Sobre ele, um enorme cachorro de porcelana branca, um copo de água, imagens de Nossa Senhora Aparecida, São Benedito, Iemanjá, São Cosme e São Damião, um anjo de asa quebrada, um retrato de minha falecida tia Nadir e uma foto de Francisco Alves, o cantor das multidões. Tudo isso sobre um escandaloso pano de crochê turquesa, arrematado nas pontas por exibidas rosas vermelhas.
"Elogio à cafonice", talvez dissesse alguém com rígidas normas de decoração. "Tropicalismo católico", certamente Vitalina replicaria. Se os altares eram ou não heresia, cafonice ou tropicalismo cristão, isso não vinha ao caso. O importante é que eles funcionavam. E como!
Se analisado por estudiosos de teologia, certamente o "funcionamento" também seria considerado uma heresia, mas, como nenhum teólogo jamais visitou as casas de minhas avós, os altares seguiam livres, operando pequenos (e grandes) milagres.
O altar fonográfico de Vitalina, por artes dos latidos do cão de São Lázaro, pela persistência de Nossa Senhora Aparecida ou pelos acordes afinados de Francisco Alves, endireitou a gagueira de Mauro, meu irmão. Na época muita gente se recusou a admitir que um rádio pudesse operar tamanho milagre. "Desconjuro, dona Vitalina, de onde já se viu rádio fazer milagre?", dizia Benedita, sua amiga fiel, benzendo-se.
O que as pessoas não percebiam é que, por mais carnavalizados e estranhos que fossem, naqueles altares residia "o poder do impossível", como Virgínia costumava dizer. Ali, entre imagens sacras, flores, retratos, velas, botões, medalhas, moedas, galos de cerâmica, notas de jogo de bicho, lembrancinhas de aniversário e quinquilharias, Vitalina e Virgínia se fundiam com o coração do mundo, o coração da Senhora dos Muitos Olhos e Braços.
E assim fundidas elas agarravam o tempo e dele faziam o que queriam. Esticavam o futuro, atravessavam o presente, cerziam o passado e faziam de conta que podiam voar e mover montanhas.
Um dia, sem muito espalhafato e poucas testemunhas, nasceram-lhes asas. Voaram e sumiram nas nuvens em busca da Mãe.
Vez por outra elas me visitam nos altares que me ensinaram a erguer...
Texto extraído do meu livro Guadalupe e as Bruxas publicado pela Editora Planeta.
4 comentários:
Marcia, o que dizer do seu blog/
È simplesmente divino. Adoro vir aqui. Tem muito o que ler e aprender. Um beijo.Te adicionei aos favoritos;
Eu gostei muito do seu blog, ele é bem "bruxo". Mas "bruxo" de um jeito diferente: o jeito que não se enquadra a padrão algum já pré- estabelecido, mesmo entre os bruxos. E é isso que eu gosto na sua literatura e na sua forma de ser. Vc é uma bruxa que não se enquadra, apenas é!
Quanto aos Altares: realmente esses são divino, sejam como forem, não importa é um lugar além de tudo... tudo mesmo! É um espaço criado pelo poder da fé. Como explicar algo que não se explica? mesmo com todas as teorias conhecidas, o Altar é um mistério conhecido apenas por aquele que o erigiu não importando o jeito e o lugar! Beijos
...Márcia...
os altares são como um porto para a fé. Os portos recebem influencias de todas as nações, daí suas riquezas. é
É de grande esclarecimento dar aos altares toda a plenitude e energia. Que mulheres fantásticas te geraram!
um bejo,
O que gosto dos santuários, é que são misteriosos para quem crer e sempre funcionam como ponto de energia máxima dentro do ambiente em que se encontram. Como Vitalina cultuo um santuário bem eclético. Beijos e até de repente.
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