Deus estava de férias quando Felicidade nasceu. Acompanhado por um séquito de anjos, querubins, serafins, santos e, é claro, o Filho, fechou o Paraíso e grudou na porta um apressado "Volto já". Mas não pretendia voltar tão cedo...
No céu ficaram as Santas, as Senhoras, Eva e Lilith (que aproveitara as férias de Deus para visitar as amigas). A entrada de Lilith se dera durante um descuido de São Pedro que, eufórico com a promessa de vários dias de vagabundagem, esquecera de passar as famosas sete chaves na porta.
Lilith não se fez de rogada e entrou conduzida pelas mãos de Joana, a do Arco. Escondeu-se num quartinho em que Deus guardava as mundanices da Terra e que não fazia a menor questão de ver. E lá, entre os dejetos da humanidade, o prazer, a gula, os líquidos impuros, o riso, as gargalhadas, a esperança, a carne, as mulheres, asserpentes, as maçãs e os seus respectivos pecados, Lilith ficou escondida por vários dias celestiais.
Não sei se pela presença infernal de Lilith ou se pela fermentação dos tais líquidos impuros, os dejetos mundanos iniciaram um quântico processo de concepção que culminou na gravidez de Lilith. Concepção sem Pai nem Espírito Santo, em si como a gravidez das mulheres...
A solidão, feminina por natureza, não durou muito e logo vieram as Santíssimas, Eva e as Senhoras. Juntas, enquanto Deus se divertia com o Seu séquito de falos, tricotaram casaquinhos, bordaram lençóis, mantas, cueiros e fraldas, tecendo em nós muito delicados, os fios do destino da pequena Felicidade. ( A esta altura devo dizer que por processo transcendental inquestionável ou pelo excesso de maçãs que Lilith ingeriu durante a gestação, todas já sabiam que a barriga fermentava uma menina.)
Não sei se por generosidade Altíssima ou se pelo desejo de se projetarem em algo mais além da santidade, depois de discutirem por séculos, milênios e horas, Santas, Senhoras, Eva e Lilith decidiram que a menina se chamaria Felicidade.
Guadalupe foi a primeira a sugeri-lo quando se recordou que o vira nos olhos de Diego, o indiozinho mexicano, refletindo todas as estrelas do céu. A lembrança da Virgem suscitou as recordações das Feminíssimas presenças. Aparecida o identificou nos corações dos pescadores que a retiraram das águas do rio; Maria , quando lembrou de seus seios a jorrarem leite nos lábios do Filho. Fátima também nele pensara quando fechou o céu em negror para logo depois o abrir em luz. Joana, a do Arco, nele pensara quando corria livre entre os guerreiros e até quando sustentou seus ideais na fogueira. Santa Rita de Cássia custou um pouquinho para dele se recordar mas logo o localizou num cantinho da cozinha, bem debaixo da janela, onde podia se esconder da violência do marido. Lilith dele se recordava tatuado no corpo de Adão, no momento em que rolou sobre ele e recebeus seus líquidos. Eva, o reconheceu no brilho redondo da maçã roubada do pomar de Deus.
Recordadas por retalhos de altíssima humanidade, nomearam Felicidade bem antes dela ter nascido.
Não sei se por nomeação prematura ou por motivo que está mais além da compreenção, Felicidade não nasceu óbvia. Nasceu sem as dores do parto e sem as contrações do ventre. Em vez de braços, abriu enormes asas; em vez de razão, exibiu espirais; em vez de olhos, arregalou uma estranha mirada atemporal. Sem tempo, braços e razão, tornou-se a filha preferida de todas as mulheres celestiais.
Mimada, acarinhada por séquito Santíssimo, Felicidade cresceu fora das vistas de Deus e da bravura eloquente dos santos.
Um dia, quando Deus resolveu faxinar o quarto que Felicidade nasceu, encontrou-a brincando com os dejetos dos mortais. Lembrou-se de Lilith e daquela estranha mania que ela tinha de querer ser feliz. "Não, esta criança não pode ser filha Dela! Lilith está presa nas profundezas do deserto, guardada por uma horda de demônios. Eu mesmo a pus lá!", Ele disse, sem muita certeza.
Felicidade, assustada por imperial presença, correu para se esconder debaixo do manto de Nossa Senhora e, ali, entre véus diáfanos de calor altíssimo, desabrochou humana, demasiado humana.
Por falta de deserto que a trancafiasse e demônios que a vigiassem, Deus a arremessou à Terra, num dia em que os corações dos mortais assombrearam em eclipse.
"Milagre!", a humanidade gritou em uníssono quando Felicidade iluminou os seus corações.
"Mania de ser feliz.", Deus resmungou lá do alto.
sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008
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5 comentários:
ENHORABUENA, Marcita!
Vai seu uma experiência maravilhosa ter seus textos aqui.
Esse da Felicidade é qualquer coisa! Tão inteligente! Tão perspicaz! E tão bonito!
Estou contente de se a primeira pessoa a lhe deixar um comment. Será que fui?
Parabéns!
beijão
Ana
Parabéns pelo seu blog. Conseguiu,
hein!
Acabei de ler Felicidade às 7h30 da manhã de sábado e fiquei com mania de ser feliz! Hoje o dia será maravilhoso assim como o do resto de minha vida.
Bençãos luminosas
Marcia
adorei o texto felicidade,até porque tenho uma filha que se chama Leticia - felicidade.
Fazemos um sarau literario com amigos e vou ler seu texto dessa vez. parabens.
graça lima
Olá Márcia. Nunca é demais lembrar que foi você que abriu as portas do Caminho Lunar para mim. Tá, vc não se lembra... =D
Adorei seu blog. Você tem o suave toque de mãe em suas palavras, e feminina por natureza, percebemos as nuances de como um bom homem deve ser. E como Fábio Jr. (sim, ele mesmo!) Roupa Nova (Simmmm!!!) e Leoni (Hum hum) no colo das mulheres que amamos nós homens somos apenas meninos.
Felicidade nasceu de quem tinha que nascer mesmo... E, engraçado... Como o Arcano XVII sorriu ao perceber sua percepção dele mesmo!!!
Vou adicionar seu blog aos meus favoritos. Aguardo ansiosamente o próximo post, percebendo que hoje meu dia será diferente porque descobri onde Felicidade se esconde - nas vestes da Mãe.
Até o proximo post!
Ah, por favor: gostaria que vc visitasse meu novo blog:
http://tempest.blog.terra.com.br
Felicidade e Lillith são próximas, sempre achei.
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