Quem passasse por aquela rua, cravada no coração da Tijuca, nem de longe desconfiaria de que, num velho sobrado, ela abrigava um estranho grupo de bruxas. Um bando de stregas guardado por um cachorro velho e peludo chamado Tupi.
A princípio, a razão dessa brasileirice canina poderia parecer absurda, porém, as bruxas possuem uma lógica que desafia todos os princípios da razão, e por isso Tupi se chamava Tupi, porque um dia, sabe-se lá por qual artimanha, Hebinha, a mais sensata das bruxas do grupo, recebera um estranho aviso de uma cabocla do centro espírita que frequentava: "Vosmicê é protegida por um índio véio, garboso e guerreiro." Ao voltar para casa, Hebinha encontrou, bem na porta de entrada, um filhote mestiço de pastor alemão com vira-lata, feio, raquítico e fedorento. Lembrandp-se das palavras de cabocla Jurema, pegou o animal e levou-o para dentro de casa. Chamou-o de Tupi e o transformou num índio. Não sei se grato pela acolhida ou por ser o instrumento de um plano inacessível aos mortais,Tupi adequou-se como uma luva ao papel de índio protetor de um alucinado bando de stregas.
Todos os dias, depois de seu regular passeio pelas calçadas e postes da rua, Tupi subia a escada escura e comprida do velho sobrado, deitava-se atravessado no topo e ali ficava como um degrau a mais que escanrava os dentes. Guardava a entrada como um índio à espreita da caça. Comia à noite, quando todos já estavam dormindo, e retornava, rápido, para seu lugar de obervação.
Vivia entre as mulheres e pouco ia ao andar de baixo, ao grande armazém em que os homens vendiam as iguarias que as stregas preparavam no andar de cima. Não sei se cansado de tanto ciau e bambino, Tupi resolveu trazer para a casa uma bruxa brasileira. Procurou na rua e não a encontrou. Fez então uma coisa insólita: aliou-se a José, o ragazzo mais belo da casa. Um autêntico filho da Itália, moreno, sensual e divertido. Essa aliança começou com inesperadas visitas ao armazém. José, que adorava animais, passou a receber o cachorro com suculentas linguiças, fatias de salame, nacos de pão e presunto. A amizade estreitou-se de tal modo que José passou a carregar Tupi para todo canto que ia. E foi assim que o cachorro tornou-se presença constante nos longos passeios de carro que José fazia nos fins de semana. Da janela, Tupi procurava...
Um dia, num desses passeios automobilísticos, Tupi encontrou o que tanto procurava. Imediatamente abanou o rabo e começou a latir. Preocupado e achando que o animal estava querendo sair para fazer suas necessidades, José estacionou o carro numa praça. E lá estava Aída, a moça mais bonita que José já tinha visto. Tupi aproximou-se dela e se esmerou em gentilezas. Fez piruetas, rolou no chão e fingiu-se de morto. O namoro entre José e Aída iniciou-se em meio a bolas lançadas e afagos na barriga do cachorro. Com o tempo, as bolas eram lançadas cada vez mais longe, para que Tupi os deixasse entregues aos carinhos. Tupi percebeu e "misteriosamente" passou a ter grandes dificuldades para encontrar a bolinha. Passava horas fuçando atrás de arbustos e cavando buracos. O namoro logo chegou ao altar. Tupi não foi à igreja. Preferiu recepcionar os noivos no topo da escada.
Quando os noivos chegaram ao velho sobrado, lá estava Tupi em seu posto de observação. Acostumada com a agilidade pueril do animal, Aída estranhou a solidez inerte que ele então exibia. Chamou-o para brincar, fez afagos em sua barriga, e... nada. Tupi não esboçava um só movimento. Foi nessa hora que Otília, a matriarca, chamou-a para conhecer o quarto que as mulheres haviam preparado para os dois. Aída seguiu-a de bom grado e, se não fosse a presença de uma mesa cheia de pães no centro do aposento, o acharia perfeito. A essa altura devo esclarecer que Aída, filha de Virgínia, afilhada de Afrodite e de Nossa Senhora de Fátima, crescera em meio às sombras dos xales e à luminosidade das roupas engomadas. Em seu mundo não havia espaço para os excessos das massas. O pão era comido de manhãzinha e no fim da tarde, e sempre à mesa de jantar. Não. Decididamente os pães não faziam parte do cenário de um quarto de dormir. E ainda por cima com tanto vinho... Lembrou de Virgínia e trocou o vestido de noite pelo recato do xale negro.
Na manhã seguinte, José acordou de cara fechada. As mulheres não perguntaram por quê. Aguardaram Aída com a mesa preparada para a feitura dos pães. Aída não entendeu a razão de Otília e o bando precisarem ouvir ópera enquanto preparavam a massa. Achou estranhos as saias suspensas entre as coxas e os decotes caídos sobre os seios. Mas, enfim, eram italianas, e Virgínia já havia falado sobre as estranhices das stregas...
Naquela noite o pão e o vinho lhe despertaram uma estranha lânguidez, e, na manhã seguinte, José foi feliz para o trabalho...
Obs: escrevi este texto para Aída, irmã de Maria Luiza, América e Olinda e filha de Virgínia. Quando o escrevi nem de longe imaginava que a Mortíssima a levaria, como levou Maria Luiza, dormindo. Na minha cabeça ela, minha mãe, minhas tias, minhas avós, bisavós e trisavós, eram imortais... Na madrugada de anteontem para ontem, sonhei com a Virgem num caixão de vidro. Bela, imóvel como Tupi. Pensei no significado do sonho durante o dia inteiro. Hoje fiquei sabendo das artes da Ossuda. Ao mesmo tempo em que a tristeza invadiu minha alma, fiquei feliz ao decifrar o sonho: a Virgem fez com que eu escrevesse livros e as tornasse imortais...
9 comentários:
Que lindo Márcia com certeza ela esta muito orgulhosa deste feito, não são todos que conseguem fazer magia com as palavras!
Parabéns!
Márcia, vim via facebook,amiga da Maristela. Seu blog é uma delícia e seus textos instigantes.Farei muitas visitas, certamente.
Vou procurar os livros.
Márcia, queria deixar aqui meu agradecimento pelos livros maravilhosos. Obrigada por me empurrar para fazer as pazes com a minha família de mulheres barulhentas na cozinha, com as ervas e bonecas de milho da minha avó Maria (toda avó Maria é poderosa), com meu sobrenome (Dionisio) que achava muito devasso para uma moça tímida, com todo o poder que todas as mulheres têm e que independe de saber feitiços de cor ou não.
Obrigada mesmo.
Jamile.
Olá!
Te convido ao Dia sem Carne:
http://sementeperegrina.blogspot.com/2010/03/dia-sin-carne.html
Um abraço,
Luciana Onofre
adorei mesmo
Márcia!!!
por favor volte a postar com mais frequência... a gente sente falta dos teus textos maravilhosos!!!
volta volta volta!!!
Pô, Márcia!
Q baita honra a tua visita no meu blog, guria! Sou tua fã e já fiz muitas das tuas receitas (o Marcelo já comeu algumas, até).
Amei tudo o q vc escreveu, q bárbaro! Até acho q a mídia deveria fazer um programa com a gente,tipo... caldeirão justo, sei lá...ia render q é uma blza!
ñ deixaram o meu povo ir de bruxas douradas nos paredões,mas de drags,sim...sacanagem...
Vai lá no Do paredón ao paredão q tem post novo e meu email é bruxagauderia@terra.com.br
acho q a gente tem coisas pra conversar/ bjocas!
é agora q a mãe do outro pira.ah,ah,ah(risada de bruxa... rs)
Bom te encontrar na rede... Estou acostumada com suas palavras no papel!
Sou psicóloga, segunda organizarei uma vivência sobre sexualidade feminina e estava buscando mais inspiração, pensei em seu nome e encontrei seu blog. Acabei de degustar o seu "Panela de Afrodite", em breve quero aumentar a lista.
Abraços!
Boa tarde, Marcia, parabéns pelo blog.
Sou autor e blogueiro também de Nova Friburgo e gostaria de divulgar meu novo livro no seu site, se possível.
Entre em contato comigo (tavogomes@yahoo.com.br)
Abraços.
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